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Sem extremismo
Por Juliana Ravelli
Do Diário do Grande ABC
15/08/2010 | 07:04
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Yasmin Zeitoun, 16 anos, é muçulmana. Começou a usar o véu, o hijab, para cobrir a cabeça aos 7 e garante que foi por vontade própria. Muitos não sabem, mas a mulher que segue o islamismo tem o direito de decidir se o adota ou não.

A vontade de Yasmin, que mora em São Bernardo, é a mesma de milhões de muçulmanas espalhadas pelo mundo. Entretanto, muitas das que vivem na França poderão não ter mais direito de usar dois tipos de véus: a burca (cobre todo o corpo e o rosto) e o niqab (os olhos ficam de fora).

Em julho, deputados franceses aprovaram projeto de lei que proíbe pessoas de circularem pelos espaços públicos com o rosto coberto. Os defensores da ideia afirmam que o véu interfere na dignidade feminina, contraria a democracia e representa risco à segurança por impedir a identificação de quem o usa. "Não tem por que proibir. É falta de respeito. Todos têm o direito de escolher sua cultura e religião", afirma Saja Mohamad Saifi, 17, que sente-se bem com a cabeça coberta.

Em setembro, a proposta será votada no Senado. Se aprovada, a que usar o véu receberá multa de 150 euros (R$ 345); o marido pagará mais: 30 mil euros (R$ 69 mil), além de pena de até um ano de prisão. Na França vivem quase 6 milhões de muçulmanos, a maior comunidade na Europa.

Absurdo - "É retrocesso. Leis como essa criam instabilidade. Hoje acontece com muçulmanos. Amanhã poderá ocorrer com outros", diz o sheikh Jihad Hassan Hammadeh, de São Bernardo.

Para a antrópologa Francirosy Ferreira, o fato influirá na autonomia e muitas poderão não andar mais pelas ruas. "Ninguém perguntou se elas não querem usar a vestimenta islâmica. Temos de parar de olhar para essas mulheres com visão ocidental".

O preceito está no Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos. "Deus manda preservar a beleza da mulher para a família", explica o sheikh. Em geral, usa-se o véu após a primeira menstruação. E é preciso vestir roupas que cubram pernas e braços na frente de homens desconhecidos.

Apesar de obrigação religiosa, ninguém pode forçá-la; é decisão pessoal. A mãe de Yasmin não veste o hijab. "Quem não usa desrespeita a vontade de Deus, mas não deixa de ser muçulmana. Não adianta usar e ter mau comportamento", diz o sheikh.

Escolhem quando colocam o véu
As muçulmanas têm o direito de decidir quando começarão a usar o véu. Tamara Ahmad Jarouche, 16 anos, preferiu esperar até os 15. "Depois que coloquei, passei a me sentir muçulmana de verdade", afirma. A adolescente não foi obrigada pelos pais a adotar a prática. Na família dela, aliás, há muitas mulheres que não usam o hijab.

Saja Saifi quis vestir o véu aos 10 anos, quando viu a irmã mais velha fazê-lo. "Minha mãe queria que eu esperasse mais um pouquinho para não me arrepender. Se não tivesse feito na infância, seria mais difícil depois", acredita.

A amiga Carima Moumtez El Orra, 16, fez a escolha ainda mais cedo, aos 6 anos, e diz que não se arrependeu. Todas garantem que o véu incomoda muito menos do que as pessoas imaginam. Na opinião das meninas, é possível se acostumar com ele em pouco tempo.

Vaidosas - Engana-se quem pensa que as mulheres que colocam o hijab não são vaidosas. A roupa super na moda, as unhas e as sobrancelhas bem feitas, o lápis nos olhos e o rímel evidenciam o contrário. "Tem gente que, quando me vê, diz ‘Nossa você cobriu o cabelo, era tão lindo'. Respondo que continua sendo", diz Tamara.

Elas vão com frequência ao cabeleireiro. Quando há homens no local, são atendidas em salas separadas, nas quais apenas mulheres entram. Não podem mostrar os cabelos para homens desconhecidos; só para os da família e entre elas. Como todas as outras mulheres, as muçulmanas cortam, hidratam, fazem chapinha, escova, progressiva e tingem o cabelo como desejam.

Há muitos modelos, tecidos e cores
Tamara Ahmad Jarouche, 16 anos, tem três gavetas abarrotadas de véus; estampados, bordados, de seda, cor-de-rosa, azul. Acabou de voltar do Líbano, de onde trouxe mais 30. Quantos tem no total? Ela nunca contou. A etiqueta das peças revela que, apesar de comprados na terra de seus familiares, muitos são fabricados na China e Índia, onde muçulmanos não são maioria.

A maneira de usá-los é bem variada. No Brasil e em grande parte dos países, veste-se o hijab, como o de Tamara, em que o rosto fica descoberto. No Afeganistão, adota-se a burca, que cobre todo corpo. O niqab, obrigatório na Arábia Saudita, só deixa os olhos à mostra.

O shayla, mais longo e retangular, é preso nos ombros e deixa o pescoço aparecer. O xador esconde o corpo, mas o rosto fica aparente; o khimar cobre os ombros; o al-amira é composto por duas peças: touca e lenço leve.

Milenar - Qualquer imagem de Maria, mãe de Jesus, a representa com a cabeça coberta por um tecido. O costume é milenar, surgiu muito antes do islamismo. Mulheres de diversos povos, como judeus, árabes e mesopotâmicos, vestiam véus sobre a cabeça. No início, não eram relacionados apenas à religião, mas principalmente à classe social; só as mais ricas os usavam.

Corpo e cabeça cobertos na praia
O uso do véu não as impede de praticar esportes. Carima Moumtez já praticou hipismo e natação. Na piscina, participava de uma turma só com meninas e a professora. Para isso, portas de vidro eram cobertas. Em vez do maiô, vestia um tipo de macacão até o joelho e touca.

De férias no Líbano, Tamara foi duas vezes ao parque aquático com a vestimenta. Como ela, outras mulheres entravam dessa forma na água. Nenhuma perdeu a oportunidade de se refrescar no calor de até 47ºC.

No local, muitas usavam burkini. Bur... o quê? É um tipo de maiô desenvolvido para as muçulmanas, parecido como macacão com saia, que cobre braços, pernas e, claro, a cabeça. Na praia, também o usam e entram no mar com a vestimenta islâmica.

Vaidosas, muitas frequentam academia, mas as destinadas apenas às mulheres. Garantem que o véu incomoda muito menos do que os exercícios pesados.

Sem balada - As adolescentes muçulmanas curtem a maioria das coisas que jovens da mesma idade gostam. Vão ao shopping, cinema, pizzaria, casa de amigas. Mas baladas e locais com bebida alcoólica estão fora de cogitação.

Namoro? Nem pensar! O pretendente fala com o pai da menina e, se ele concordar, inicia-se o noivado. Ela tem o direito de escolher se aceita o garoto ou não. Mas o casal só se conhece de fato após o casamento.

Em paz no Brasil
O Brasil tem cultura bem distinta da dos muçulmanos. Isso não impede que sejam bem recebidos. "A maioria nos respeita. Olha apenas porque somos diferentes", afirma Carima. Uma minoria faz piada de mau gosto, chamando-as de mulher-bomba. Na época da novela Caminho das Índias, alguns as confundiam com os personagens, sem saber que os indianos representados na telinha eram hindus e não mulçumanos.

As diferenças culturais, às vezes, podem gerar questionamentos em quem está decidindo o momento de cobrir a cabeça. Tamara lembra de adolescentes que começaram a usar o véu e depois tiraram. "É melhor pensar bem antes de colocá-lo."

Nicole Marquezin, 15 anos, é católica e grande amiga de Tamara. Ela admira as tradições islâmicas e abomina as brincadeiras de mau gosto. "Tem menino na escola que fala muita besteira, não sabe respeitar", afirma.

Outras religiões cobrem a cabeça
No judaísmo, as mulheres casadas não devem deixar o cabelo descoberto; apenas os maridos podem vê-lo. Por isso, costumam usar peruca ou lenço na cabeça. Segundo Shamai Ende, rabino de Santo André, essa é uma obrigação importante e está presente no Torá (livro sagrado dos judeus).

No passado, para envergonhar uma mulher, costumava-se mostrar o cabelo dela em público. As judias também precisam se vestir de forma discreta, assim como os homens. Eles devem cobrir a cabeça desde a infância com chapéu ou quipá (chamado de solidéu) em sinal de respeito a Deus.

Em geral, os ensinamentos são seguidos pelos mais religiosos. Simão Kagan, 20, de São Caetano, usa o quipá só na sinagoga, em cerimônias e festas. "Aprecio quem usa, mas não aderi ao costume", diz.

As mulheres que fazem parte da Congregação Cristã têm de cobrir a cabeça com véu branco nos cultos na igreja e quando oram. O preceito está presente na Bíblia que seguem. Ainda mantêm o cabelo cumprido, como se fosse um véu natural presente no dia a dia.

Elas têm os mesmos direitos
Marua Hindi, 14 anos, Yasmin Zeitoun, 16, e outras tantas jovens têm certeza de que querem estudar e construir uma carreira profissional. Casamento e filhos virão depois. Mas, no mundo, é fato que nem todas muçulmanas conseguem atingir esses objetivos.

Em alguns países islâmicos, as mulheres ainda são tratadas com inferioridade e violência. O que a maioria não sabe é que isso não está diretamente relacionado ao islamismo. A antropóloga Francirosy Ferreira, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, explica que cada país tem particularidades culturais que interferem na interpretação da religião.

Assim, costumes - muitos deles machistas - que existiam bem antes do Islã continuam a ser praticados em determinadas regiões, não em todas. Na Somália, por exemplo, ainda ocorre a mutilação genital feminina para que a mulher não sinta prazer durante a relação sexual. Trata-se de uma prática tribal anterior à religião.

Aliás, é preciso lembrar que em todo o mundo, inclusive no Brasil, mulheres sofrem com a violência física, emocional e psicológica, independentemente da cor ou crença.

Pioneiras - O Alcorão garante às mulheres o direito de participar de votações há cerca de 1.400 anos. No Brasil, o voto feminino começou a se consolidar apenas na década de 1930, tornando-se obrigatório em 1946. Nos Estados Unidos e Europa, muitas morreram para garantir esse direito.

As muçulmanas também podem estudar, trabalhar, tomar anticoncepcional, pedir divórcio e se casar novamente. Segundo o sheikh Jihad Hassan Hammadeh, o salário que ganham ao trabalhar pertence a elas. Os homens têm a obrigação de sustentar a família. Se precisarem do dinheiro das esposas, devem pedir emprestado.

Futuro - Marua sempre soube que quer seguir os estudos e se realizar profissionalmente. Só não se definiu ainda entre a medicina ou a engenharia. Yasmin também sonha com a independência financeira e até estudar e viver no Exterior. "Temos os mesmos direitos que os homens", afirma.

Em algumas nações muçulmanas, as mulheres até mesmo já se tornaram governantes. A primeira a dirigir um país islâmico moderno foi Benazir Bhutto. Foi primeira-ministra do Paquistão em duas ocasiões, de 1988 a 1990 e de 1993 a 1996. Foi assassinada em 2007 em um atentado terrorista.

Relógio mostra momento das orações
Entre as obrigações dos muçulmanos estão as cinco orações diárias com o corpo voltado para Meca, cidade sagrada. Para não perder o horário de cada uma, a família de Tamara trouxe do Líbano um relógio que avisa a hora exata em que devem ser realizadas. O aparelho também mostra as datas dos calendários gregoriano (seguido por ocidentais) e islâmico, que leva em conta as fases da lua. Eles estão no ano 1431.

É a religião que mais cresce
Não se sabe ao certo, mas calcula-se que existam cerca de 1,5 bilhão de muçulmanos espalhados pelo mundo. O islamismo é a religião que mais cresce atualmente. Não se restringe apenas aos árabes. Há muitos outros povos que a seguem, como persas, turcos, palestinos e curdos.

No Brasil, também não há dados concretos; calcula-se que 1,5 milhão vive por aqui. No Grande ABC existem cerca de 400 famílias; é uma das maiores comunidades do País.

O islamismo foi fundado no século 7 pelo profeta Mohammad, conhecido pelos brasileiros como Maomé. Nasceu em Meca, na Arábia Saudita, cidade sagrada para quem segue essa religião.

Diferentemente dos cristãos, os muçulmanos acreditam que Jesus foi importante profeta. Maria também é muito respeitada, considerada modelo de mulher e comportamento.

Por Deus - A palavra Islã quer dizer submissão, referindo-se à obrigação que os muçulmanos têm de respeitar e aceitar a vontade de Deus. Também está relacionada à palavra árabe salam, que significa paz.

A religião é completamente contra a violência causada por terroristas muçulmanos, chamados extremistas ou radicais religiosos. Movidos pelo ódio, acreditam que, ao causar atentados e matar pessoas, estão protegendo sua crença e fazendo o que Alá - como Deus é chamado em árabe - deseja e espera deles.




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