Memória Titulo
Zé Relógio

O cara não ganhou esse apelido de graça. Diziam lá no escritório que o homem só não era digital nem tinha ponteiro

Por Ademir Medici
Do Diário do Grande ABC
08/06/2011 | 00:00
Compartilhar notícia


O cara não ganhou esse apelido de graça. Diziam lá no escritório que o homem só não era digital nem tinha ponteiro, fora isso trabalhava 24 horas por dia e era de uma pontualidade que fazia inveja até na rainha da Inglaterra. Foi uma pena que não teve jeito de dar corda, muito menos trocar a bateria no dia que o velho contador parou. Um infarto fulminante veio para justificar as estatísticas e os alertas que, vez ou outra, aparecem na mídia tentando abrir os olhos e ouvidos dos workaholics desavisados.

Zé Relógio, no entanto, não aceitava o rótulo de trabalhador compulsivo. Gostava do nickname e repetia, como um cuco, que só trabalhava o quanto era necessário. Adorava contar suas proezas de seguidas noites sem sono, de dias inteiros sem parada para uma refeição sequer e brincava afirmando que, apesar de ter nascido na Paraíba, "esse relógio era suíço e não quebrava nem com a peste".

Lembrei da história do velho homem-relógio, que conheci lá pelo século passado, pois ouvi esses dias, em meio a tantas conversas que rolavam em paralelo na loja de um shopping, um garotinho perguntando ao pai por que ele trabalhava. O cara, com voz de burocrata bem-sucedido, disse com orgulho ao moleque perguntador: "Para que a gente possa vir aqui comprar as coisas!".

Foi uma pena eu não ter escutado toda a conversa, porém me chamou muito a atenção quando o menino disse: "Mas a gente não precisa comprar tanto assim".

Nem de longe quero comparar o velho Zé Relógio com o papai consumista do shopping da semana passada. Penso, porém, que cabe sim pensarmos na pergunta da criança, tão simples e paradoxalmente tão profunda: por que trabalhamos? Conheço milhões de pessoas que ficariam meio que sem saber o que responder. Quanto a esses, fica fácil olhar para suas histórias e já saber que o motivo, infelizmente, não é nada mais do que sobreviver.

Outros tantos se dizem apaixonados. Acho que inclusive estou nesse time, mas sempre fico atento para não cair na armadilha, pois como já bem disse Nizan Guanaes, triste daquele que odeia segunda-feira, pois não é feliz com o seu trabalho. Pior, porém, está aquele que não espera ansioso os sábados e domingos, este deve, por certo, estar fugindo da família ou dos amigos.

Tem outra turma interessante. A dos insubstituíveis. Eis aí um rótulo autoaplicável. Segundo os próprios, nada acontece sem que eles estejam presentes, e assim acabam tendo motivos de sobra para justificar toda e qualquer ausência.

Precisamos então responder com verdade à pergunta feita pelo garotinho alguns parágrafos atrás. Talvez muitos descobrirão que não são insubstituíveis, porém têm medo de delegar, ou pior, enfrentam dificuldades de confiar determinadas funções reconhecidamente impossíveis de serem acumuladas por uma só pessoa.

Outros mais assumirão que não é bem paixão, mais sim obsessão misturada com um comodismo massacrante, o que faz com que o sujeito entre no piloto automático, transformando o trabalho em um fim em si mesmo e não em um prazeroso meio para ser feliz.

Vale a pena pensar. Como Zé Relógio, todos nós um dia encontraremos nossa hora. Trabalhemos então para que, quando isso acontecer, todas as voltas dos ponteiros de nossas vidas tenham valido a pena.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;