Cultura & Lazer Titulo 'Temos de fazer outra abolição'
Laurentino Gomes lança primeiro livro da trilogia que fala sobre escravidão no País

Escritor visitou 12 países para pesquisa em campo

Por Miriam Gimenes
Do Diário do Grande ABC
15/09/2019 | 07:56
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Divulgação


Há pouco os noticiários deram conta de uma situação que não condiz com 2019. Um adolescente negro, que teria furtado uma barra de chocolate em supermercado de São Paulo, foi chicoteado por seguranças do local. Em vídeo que circulou na internet, ele não só sofreu agressão, nu, como teve as mãos amarradas e a boca amordaçada. A imagem remeteu a uma época obscura do País, no Brasil Colonial, quando escravos eram colocados por feitores em troncos, algumas vezes por dias seguidos, onde eram açoitados por seus algozes. Pelo visto, só diminuiu a frequência, mas por aqui pouca coisa mudou.

É por isso que o jornalista e escritor Laurentino Gomes, que acaba de lançar a primeira edição da trilogia Escravidão – Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares (Globo Livros, 480 páginas, R$ 49,90) resolveu pesquisar sobre o assunto, o qual ele julga ser o mais importante da nossa história. Para tanto, trabalhou seis anos, leu mais de 200 livros, visitou 12 países em três continentes. <EM>

“Depois de ter feito a trilogia sobre três datas importantes (1808, 1822, 1889), que tratam da formação do Brasil, vi que tinha um fio que costurava tudo, que foi a escravidão. O Brasil foi o maior território escravocrata do hemisfério ocidental, recebeu cerca de 5 milhões de cativos africanos e todos os ciclos econômicos foram construidos pela escravidão até o fim do século XIX, desde a extração do pau-brasil até a cafeicultura. Tudo isso só foi possível graças à mão de obra cativa”, analisa.

Quando houve a assinatura da Lei Áurea, em 1888, e, em seguida, a Proclamação da República, em 1889, os escravos libertos foram jogados à própria sorte. “Aboliu-se a escravidão e eles foram abandonados. E hoje pagamos o preço tanto de preconceito quanto de desigualdade social, que atinge muito mais fortemente a população afrodescendente. Por isso, tenho defendido a necessidade de uma segunda abolição, que é corrigir esse abismo de possibilidades existente na população”, analisa o autor.

E como isso seria possível? “Existem diversas maneiras de fazer isso. Uma forma é superar as barreiras invisíveis que embutem preconceito racial. As empresas, a administração pública, na hora de recrutar a sua força de trabalho acaba involuntariamente privilegiando os brancos e isso explica por que os principais cargos de direção são ocupados por pessoas brancas. Não temos ministro negro no Supremo (Tribunal Federal). Só 10% de livros publicados no Brasil são de escritores negros e isso também tem a ver com a formação, da oportunidade que se dá desde o início.” Por isso, Gomes é a favor de políticas públicas que favoreçam os negros na escola, do Bolsa Família, da Bolsa Escola e das cotas nas universidades. “Temos de superar as coisas que estão embutidas na nossa cultura, mentalidade, que às vezes favorecem o preconceito racial”, reitera.

Durante a pesquisa, que renderá ainda dois livros – a serem publicados em 2020 e 2021, dedicados ao auge do tráfico negreiro e ao movimento abolicionista e o fim da escravidão – Gomes diz que descobriu um novo País. “O Brasil não é feito apenas pelos seus heróis nacionais como dom Pedro, Getúlio Vargas. Os grandes estadistas e generais. Existe uma construção silenciosa, anônima, na senzala, nas fazendas, nas minas de ouro, que contribuíram de forma decisiva para o que somos hoje em todos os aspectos. O padre Vieira usava uma frase que coloquei como epígrafe no livro dizendo que o Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África. A gente não cuidou muito dessa alma, somos um País desalmado. Precisamos recuperar isso.”

REGIÃO
Não só se trata no livro apenas de escravos africanos. Os indígenas também sofreram com a servidão. “A primeira carga de cativos que cruza o oceano foi do Brasil para Portugal, em uma nau chamada Bretoa, de propriedade de Fernando de Noronha, que em 1511 partiu da Bahia levando uma carga de pau-brasil, pele de onça-pintada e 35 indígenas, que foram leiloados em Portugal.” A região onde hoje está o Grande ABC, antes chamada de Campos de Piratininga, era um grande mercado de escravos indígenas. Até a chegada da corte, em 1808, o Brasil matou, em média, cerca de 1 milhão de indígenas a cada 100 anos.  




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