Cotidiano Titulo COTIDIANO
Determinação a toda prova
Do Diário do Grande ABC
02/02/2017 | 07:00
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Ao atravessar a rua, a madrinha tropeçou em algo e foi ao solo. Há sempre algo no caminho de pessoas que há muito ultrapassaram a maioridade. Aliás, calçada me parece termo mais apropriado, considerando que solo combina mais com terra, coisa um tanto incomum na vida das pessoas que habitam áreas urbanas.

De qualquer forma, o sinistro que se deu com a madrinha veio sorrateiro e cheio da intenção de tirar dela a confiança que sustenta a sua força. Mas que tipo de confiança pode brotar de uma mente de quase um século? – indagarão alguns para quem o idoso deve estar sempre amparado por alguém com menos idade. Este comentário, inclusive, deve ter ecoado pelos quatro cantos quando se falou da queda da madrinha.

Algumas escoriações, entretanto, não foram suficientes para que ela desistisse. Antes, se levantou e prosseguiu com o seu intento de buscar o salão de beleza a fim de ajeitar as unhas, cuidado com o corpo que a mente ainda jovem preenche de vitalidade. É digno, afinal, deste mimo um físico que há tempos caminha intrépido por este chão.

E a madrinha é forte justamente por causa deste seu ímpeto de andar com as próprias pernas e recusar-se a entregar os pontos. Mentes astutas e evoluídas são mesmo assim, tendem a livrar o organismo das teias do tempo que, às vezes, o prendem a uma cama e faz dele um mecanismo desgastado, inabilitado para prosseguir na sua andança por este mundo. Por isso que, a despeito do susto, tratou ela de buscar o salão para se embelezar. Por que não?

Depois, só depois, já em casa, é que as dores vieram. Foi, então, necessária a intervenção do doutor, que executou bem o seu trabalho de diagnosticar e medicar. A consulta resultou, pois, num braço imobilizado, alguns hematomas, uns remedinhos e um pito para que da próxima vez siga amparada por alguém com menos idade, mesmo que mais frágil. Até porque, se este acompanhante for ao chão, terá a madrinha por perto para ampará-lo.

É possível até que o acidente seja fruto de distração, uma vez que outro sinistro vinha aporrinhando a doce senhora que, no dia anterior, se envolvera numa batida com um ônibus. A lataria amassada do seu carro, que ficou danificado por causa da imprudência do motorista que a teria fechado, a deixou mesmo chateada. “Já não se respeitam os mais velhos.” Claro que também tratou logo de esquecer o assunto e partiu de cabeça erguida para providenciar o conserto.

A madrinha é mesmo assim, determinada na cozinha, ao volante, no passeio público... É ciente da sua idade avançada, embora sustente também a ideia de que para que venha a sucumbir a este peso é necessário que a idade seja ainda mais avançada. E do jeito que está, vai bem, sobretudo, quando dá suas escapadas ao mercado, às lojas, à cabeleireira, ao sítio, à praia, a todo canto que seus pés, por conta própria, possam pisar. É o seu ritmo, é o seu jeito.

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com 




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