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Scózzari resgata Chandler
Alessandro Soares
Do Diário do Grande ABC
01/01/2005 | 19:38
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É comum numa adaptação a reverência de um autor sobre o outro. Assim é com a maioria das obras literárias vertidas para a tela grande, nas quais há um profundo respeito do roteirista pelo escritor. Mas A Dália Azul (Conrad, 108 págs., R$ 28) foge desses padrões. Primeiro porque é uma versão para quadrinhos, em preto-e-branco, de um representante legítimo do cinema noir norte-americano, um filme policial com personagens de moral dúbia e tal. Segundo, e principalmente, porque há absoluta falta de veneração nesta adaptação do único roteiro original escrito para Hollywood pelo consagrado autor de histórias policiais Raymond Chandler (1888-1959).

O responsável por isso é o desenhista italiano Filippo Scózzari, um papa da demolição de lugares-comuns e da ridicularização de clichês. Esta história foi originalmente publicada em 1982 na anárquica revista italiana Frigidaire (nome emprestado de um refrigerador, porque caberia de tudo na revista e ali tudo seria conservado) a pedido de um fã de quadrinhos e histórias policiais, Oreste Del Buono, editor da Frigidaire e da Linus. Sua Dália Azul é uma leitura oposta e ao mesmo tempo espelhada no roteiro de Chandler, que desprezou o filme lançado em 1945.

Chandler odiava o sistema Hollywood como um todo. Ao lado de Dashiell Hammett (1894-1961), teve livros transformados em película, como À Beira do Abismo (1946). Foi com essas adaptações que começou a ganhar dinheiro. Ao aceitar o convite para trabalhar em Hollywood, em 1940, viveu seus piores dias, odiando o sistema que "destruía talento", dizia. Para suportar, encharcava-se de bebida. Escreveu seu único roteiro original completamente bêbado: um veterano da Segunda Guerra que volta para seu país com seus dois companheiros Marines descobre que sua mulher está com outro homem e ela aparece morta.

Teve de se submeter a um pedido da Marinha, que não queria ver um personagem veterano de guerra transformado em assassino. O matador original, então, foi trocado por uma espécie de mordomo, e a história ficou banal. Chandler odiou a mudança, odiou o filme, mas críticos e público não. Dirigido por George Marshall, um mero cumpridor de regulamentos, e estrelado por Alan Ladd e Veronica Lake, rendeu até uma indicação ao Oscar de roteiro!

Scózzari não perdoou o Chandler que Hollywood criou, pois igualmente desprezava a interferência na criação. Achando a história boba, ironiza o autor o tempo todo, "um pau d'água que não sabe como continuar a história" e "procuro tornar digerível um Chandler que procura ser como era antes". Se faltava ironia na tensão e suspense de Chandler, Scózzari oferece isso de sobra. Seu traço nivela personagens bons ou maus a uma aparência deprimida, de relações e expressões frias, uma versão aparentemente impossível de uma humanidade insensível, mas perto da verossimilhança. No epílogo está a traçada final, a anti-reverência imparcial. Ao desrespeitar o roteirista, Scózzari traz à tona o melhor do Chandler escritor. Um espelho que distorce o torto, endireitando a imagem.




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