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Gente do Grande ABC - Peixe grande
Por Do Diário do Grande ABC
12/12/2004 | 12:36
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O pai queria que ele fosse repentista. Mal havia crescido e ganhou a viola, que rapidamente aprendeu a dedilhar. Nem se lembra como. As rimas saíam assim, com naturalidade, e ele ia cantando no meio da caatinga, para alegrar o ambiente seco em que nasceu e cresceu. São José do Egito, sertão de Pernambuco, “terra de cabra feio e de repente bonito”. “Deve ser coisa que está no sangue do nordestino. Via os outros cantarem e imitava, criando as minhas próprias rimas. Peguei prática.”

O trovador, que abandonou a carreira aos 20 anos, precocemente, é Virgílio Alcides de Farias, hoje com 50. Não seguiu o sonho do pai, Alcides, e abandonou a música. Mas, como na poesia popular, no final o que vale mesmo é combinar o som das últimas sílabas. Foi seguindo a regra que deu ritmo à vida que construiu longe do Nordeste: de repentista, virou ambientalista.

Há 20 anos, todas as manifestações realizadas no Grande ABC que pedem a preservação dos mananciais têm o dedo e as bravatas de Virgílio. Ele fez da represa Billings sua menina dos olhos, e, com o passar dos anos, conseguiu mobilizar um mundo de gente que grita ao lado dele pela valorização das águas. Já foi taxado de ecochato, termo nada elogioso usado para identificar os ecologicamente corretos, os nerds da natureza, que estão 24 horas por dia em alerta pelo meio ambiente. “Sou esse mesmo. Já me chamaram disso, nem ligo. Hoje, me respeitam.”

Entre inúmeros desafetos, ganhou centenas de amigos. Os mesmos que lotam a casa de Virgílio, em Diadema, todos os anos lá pelo dia 26 de junho, para comemorar o aniversário dele. Em noite de São João, a sala e a garagem viram pé de serra, com direito a sanfoneiro ao vivo.

O respeito conquistado por Virgílio é notório. Desde que o MDV (Movimento de Defesa da Vida) foi criado, em 1985, ele é um dos líderes que conseguiu, aos poucos, colocar holofotes sob a situação preocupante da represa. Para tanto, muitas armas. Uma delas, a língua afiada, o discurso emocionante e pontuado por retratos áridos da infância em Pernambuco. Ele nunca tinha visto um rio na vida, e por isso amava e respeitava as águas. “Às vezes fecho os olhos e vejo tudo de novo. Aquelas crianças morrendo de sede no sertão. Minha mãe acordava às 4h e andava 3 quilômetros para buscar um baldinho de água suja. Meu pai cavava o chão, procurando umidade. E a gente voltava com a lata na cabeça.”

A mãe, Maria do Carmo, teve 14 filhos. Só ele e a irmã mais velha vingaram; a outra dúzia de irmãos morreu antes de aprender a falar, por causa da seca e das doenças transmitidas pela água. É por isso que Virgílio se auto-denomina um “fugitivo ambiental”. Saiu de casa há 29 anos, e para lá só voltou uma vez. Pensa em viajar para São José do Egito em janeiro, se tirar férias da militância.

Se para Virgílio os rostos daquele sertão são difíceis de puxar pela memória, o contrário não pode ser dito. O ambientalista ficou famoso pelas bandas de lá. Virou personagem de televisão, e foi exibido na cidade como um troféu da resistência. “A mãe disse que a cidade parou para me ver. Fiquei emocionado.”

No ano passado, o Ministério do Meio Ambiente e a TV Cultura produziram uma série de dez documentários, Memória do Meio Ambiente, que conta a vida de pessoas “de grande relevância na luta pela natureza nos últimos 30 anos”. Uma espécie de homenagem aos incansáveis, que parecem loucos a pregar sozinhos no deserto. Gente como o cantor Almir Sater, os ministros Gilberto Gil e Marina Silva, o escritor Fernando Gabeira... e Virgílio, do ABC. Modesto, exibiu o vídeo ao Diário na última sexta-feira. Nada de pipoca. “Querem rapadura?”, ofereceu. Ao final, tentou disfarçar o orgulho, justíssimo, de si mesmo. “Acho um exagero tudo isso, mas gostei.”

Olha o peixe! – Aqui na região, uns conhecem Virgílio pelo nome. Outros, pelas histórias que se conta dele, todas verídicas, da época em que fazia de tudo para aparecer. No bom sentido, por uma causa para lá de urgente. Por várias vezes, invadiu empresas, prédios públicos e praças munido com peixes podres. Jogava aquela massa fedida para o alto, sem se importar em quem acertaria. Foi o jeito que encontrou para protestar contra os milhares de peixes que morriam todos os dias na Billings, tomada pelo esgoto. A estratégia surtiu efeito. Em 1992, o governo do Estado criou a lei que proíbe o bombeamento de esgoto sem tratamento para o reservatório.

Há 15 anos, Virgílio se dedica exclusivamente ao trabalho como educador ambiental da ONG (Organização Não-Governamental) SOS Mata Atlântica. Ganha dinheiro para fazer o que mais gosta. Antes, quando chegou ao Grande ABC, no final dos anos 70, era eletricista formado pelo Senai (Serviço Nacional da Indústria). Também foi metalúrgico, pioneiro ao colocar em pauta o assunto preservação nas rodinhas que só falavam em reajuste salarial. Chegava de mansinho, para não assustar os companheiros. A maioria tinha como única opção de lazer a pescaria na Billings nos fins de semana. No papo entre pescadores, conseguiu aliados. Colocou a pitada verde no aço cinza da linha de produção.

Pai de quatro filhos, Virgílio conta que todos eles, “graças a Deus”, abraçaram a causa do meio ambiente. Trazem na bagagem os genes ecológicos do pai, além de nomes sugestivos. O mais velho, Virgílio, como ele. Outros dois, Uirá e Tuíra, batizados com a herança indígena. E Natasha, inspirada no livro A mãe, de Gork, leitura obrigatória dos revolucionários. Os quatro cresceram à beira da represa, em Diadema, onde vivem até hoje. E passearam bastante no Chevette ano 77, carro mais conhecido da cidade, por exibir no capô um peixe enorme, flutuante. Era o único meio de transporte da família. “Vivia fedido, porque a gente carregava peixe podre para cima e para baixo. Ficava aquela catingueira...”

Autodidata, tudo que Virgílio aprendeu sobre ecologia foi sozinho; conversando, pesquisando, perguntando. Desde o início do ano, estuda Direito na FAD (Faculdade de Diadema). Os estudos são bancados por uma empresária de São Bernardo, que se comoveu e identificou com o empenho do ecologista. O canudo e o ambiente universitário deram novo fôlego à militância, que agora consegue elementos teóricos para justificar todos os abusos que viu durante a vida. “Quero me especializar em Direito Ambiental porque as coisas só vão mudar de verdade quando existir homens que façam as leis serem cumpridas.”

O pernambucano abre um enorme sorriso ao falar da faculdade. Pára um pouco, respira, fica quieto por alguns instantes. Depois, se lembra que, há 30 anos, prometeu a si mesmo que seria um dos ambientalistas mais respeitados do Brasil. Conseguiu. Agora, renova a fé no futuro e garante: “Vou ser um grande advogado ambientalista, um instrumento importante para mudar essa situação de descaso com a preservação. Me aguardem!” Alguém duvida?




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