Cultura & Lazer Titulo
Artístico
Por Melina Dias
Do Diário do Grande ABC
17/09/2006 | 20:29
Compartilhar notícia


No último dia 31, a polícia norueguesa anunciou ter recuperado o quadro O Grito, de Edvard Munch (1863-1944). A obra de US$ 100 milhões (uma das quatro de mesmo nome da lavra do pintor), havia sido roubada do aconchegante Museu Munch, na capital Oslo, por dois homens armados que renderam guardas e aterrorizaram turistas, na manhã de domingo 22 de agosto de 2004. Os bastidores da ação policial foram mantidos em sigilo. Sabe-se, oficialmente, que não foi pago resgate, três homens foram sentenciados a oito anos de cadeia, sendo dois deles condenados a pagar US$ 122 milhões de indenização. Entretanto, um livro que acaba de se ser lançado no Brasil pode dar uma idéia precisa dos riscos sofridos pela preciosa tela nesses últimos dois anos.

O Grito Roubado (Ediouro, 264 págs., R$ 35, em média), uma exemplar reportagem do veterano jornalista Edward Dolnick, revela o submundo do mercado de arte ao detalhar a recuperação de outro O Grito, furtado em 1994 da Galeria Nacional, em Oslo. Era o dia da abertura das Olimpíadas de Inverno, um grande acontecimento para o pacato país. As autoridades estavam em êxtase, às voltas com dois mil repórteres vindos de todo o mundo. Uma retrospectiva de Munch, o maior artista norueguês, foi organizada para embevecer turistas. O Grito foi deslocado para um lugar de destaque (o primeiro de vários equívocos) ao lado de uma janela. Ao amanhecer, dois homens e uma escada fizeram o serviço em menos de um minuto. E ainda deixaram um jocoso cartão postal. Escreveram no verso da reprodução da tela Uma Boa História (na qual uma popular pintora local retrata três homens gargalhando): "Muito obrigado pela segurança precária".

E a história virou mesmo piada. O vídeo de segurança não identificou, mas mostrou os vultos dos ladrões em ação. O que sobe a escada cai ao chegar ao topo e tudo recomeça. Em preto-e-branco e divulgada em velocidade rápida pelas TVs parecia comédia pastelão e fez muito sucesso à época. Só que o caso era sério, e surge aí uma das primeiras análises críticas do autor. Pouca ou nenhuma atenção é dada ao crescente número de roubos e furtos de obras de arte, o mercado de receptadores engloba desde ladrões pés-de-chinelo a capitães de indústria norte-americanos ou japoneses. As investigações custam caro, os recursos são reduzidos. E boa parte da opinião pública pensa, 'que se dane, por que uma simples pintura pode valer milhões?'.

“Um museu de obras de arte roubadas rivalizaria com qualquer das grandes coleções de arte do mundo. O Museu de Obras Desaparecidas poderia encher infindáveis galerias; a coleção de pinturas e desenhos incluiria 551 obras de Picasso, 43 de Van Gogh, 174 de Rembrandt e 209 de Renoir. Vermeer estaria representado, e Carvaggio, e Van Eyck, e Cézanne, e Ticiano, e El Greco”, aponta o autor.

Outras reflexões vão sendo apresentadas de forma absolutamente agradável por Dolnick. Sua grande sacada foi, como um bom escritor, escolher o personagem certo para contar uma bela história. E este é Charles Hill, o mais completo agente secreto do chamado Esquadrão de Arte da Scotland Yard. No decorrer dos capítulos ele constrói a fascinante biografia desse homem, que deixou a universidade para voluntariamente lutar no Vietnã e, ao voltar abalado para Washington, encontrou na arte sua salvação. Hill conta que ao freqüentar uma série de mostras na Galeria Nacional intitulada Civilização obteve uma idéia coerente de arte. “Tinha acabado de chegar de um ano na selva, e esta foi minha reintrodução à vida civilizada”, relembra o policial.

A divisão dedicada à recuperação de grandes obras roubadas da Scotland Yard revelou-se um segundo lar para o tira – sofisticado demais para as ruas e especialista em criar tipos durante as investigações. Avesso ao perfil 007 ("equipamentos só atrapalham"), Hill sempre trabalha desarmado. Adora incorporar personagens, geralmente exóticos compradores, para armar os flagrantes. Verdadeiros roteiros cinematográficos são elaborados por ele e sua equipe. Figurino, sotaques, tudo é minuciosamente planejado. Hill é capaz de passar horas bebericando com bandidos e traficantes, conversando com galeristas sobre a luz nas obras de Vermeer, ou se passar por um representante de um dos maiores museus do mundo.

E foi assim, na pele de um falso alto funcionário do norte-americano Museu Getty (sinônimo de instituição milionária no mundo das artes), que Charles Hill conduziu a operação que devolveu O Grito à humanidade. O plano era que o Getty pagaria o resgate exigido pelos bandidos e ganharia o direito de 'emprestar' a obra da Galeria Nacional da Noruega.

Sem pieguice, o agente Charles Hill acredita na importância de o maior número de pessoas possível ter acesso às obras-primas. Charles Hill é avesso à resposta “Dr. No” (o histriônico vilão de 007) quando a pergunta é: “Afinal, quem compraria uma obra tão conhecida como O Grito?” Essa visão do excêntrico milionário que pagaria milhões para ter uma obra que só ele poderia ver também rende boas passagens no livro de Dolnick.

Assim como são boas as descrições da atormentada personalidade de Munch (da infância trágica à incompreensão de sua obra), as teorias para a situação retratada em O Grito, os porquês da tela ser uma das imagens mais reproduzidas em todo o mundo. Dolnick não esquece de situar o leitor sobre a velhacaria que grassa no ofício dos marchands. Trata do funcionamento do universo dos leilões e, de suas incongruências, colhe declarações lúcidas como a de Peter Wilson, diretor da Sotheby’s por mais de vinte anos. "Sabe-se perfeitamente que é um embuste o tempo todo". Divertidos também são os perfis psicológicos dos ladrões, quase sempre patéticos, e de suas tentativas de passar as obras para frente. Dessas dificuldades surgem assustadoras estatísticas. “A maior parte das obras de arte roubadas desaparece para sempre: o índice de recuperação é de cerca de 10%”, escreve.

Lembrando que, apesar do clima de policial noir, toda a história é verídica (o jornalista frisa nas considerações finais que até os pensamentos dos entrevistados foram colhidos em entrevistas). As maiores emoções ficam, claro, para o desfecho. Sem ser estraga-prazer basta adiantar que Hill encontra O Grito a poucas centenas de metros da casa de verão de Munch, cenário retratado pelo pintor em outra famosa tela, Moças na Ponte (1899). É de arrepiar: o prédio branco que se vê ao fundo pertence a um homem-chave na impressionante história de salvamento. Aliás, The Artist Rescue é o título original da reportagem de Dolnick.




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;