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De olho na palavra

É hábito meu pensar. Logicamente que todo ser humano dotado de uma quantidade...

Por Rodolfo de Souza
19/04/2015 | 07:00
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É hábito meu pensar. Logicamente que todo ser humano dotado de uma quantidade mínima de neurônios também deve perder-se em volúpias cerebrais, de vez em quando.

Entretanto, vou mais longe que a maioria e não me contento em deixar na cabeça tudo o que por ela passa. Atrevo-me de fato a registrar alguma coisa no papel com o intuito de... Na verdade, nem sei bem o motivo. É possível que necessite de uma pitada de aventura no tempero desta minha vida. Sim, porque todo cuidado é imprescindível quando se deita a pena na folha branca, uma vez que a escrita, diante dos olhos, pode transformar-se em leitura, o que normalmente acarreta entendimento, navalha afiada no pescoço de quem escreve.

Rendo-me, contudo, ao fascínio do pensamento que o trabalho das engrenagens bem azeitadas do encéfalo é capaz de produzir. Talvez por isso precise colocá-lo no papel. Antes que voe para longe, devo mesmo fotografar a sua cara lavada. Corro, então, cheio de entusiasmo, em busca da substância ideal para levar a cabo o meu intento: a palavra, isso mesmo, a palavra! Esta que a mão do escritor habilidoso dá forma e reveste de significado.

Claro que, para que o fenômeno se materialize, é preciso que haja uma relação de amizade entre o que escreve e sua matéria-prima, tendo em vista a dificuldade que haveria em compreendê-la, caso não existisse tal relação. Do mesmo jeito que um distanciamento entre um e outro poderia resultar num desencontro e confinar a palavra num canto qualquer, vazio de ideia, que o escritor, carente desta intimidade, não conseguiria transmitir.

Abusar, pois, da palavra é ofício deste que a entende por causa da velha amizade. Apesar de que, verdade seja dita, palavras compõem o idioma e este, mais criterioso, normalmente mal-humorado, nem sempre se deixa domar com facilidade e, às vezes, derruba o cavaleiro que se arma de coragem e parte para a empreitada.

Tombo como este, levei não faz muito tempo, quando fui duramente criticado por ter me esquecido da crase numa situação em que um maldoso verbo transitivo transitava por local onde, por sua culpa, o acento se fazia necessário.

Fui obrigado a admitir a falha ante o escárnio do outro que chegou a duvidar dos meus dons literários. Tudo por causa dela, da Língua Portuguesa, e suas infindáveis facetas a encher de armadilhas seu vasto e fascinante território.

Mesmo assim, não me deixei levar pelo rancor, uma vez que a amo e pretendo continuar minha viagem em suas asas feitas de palavras, todas elas metidas numa complexa estrutura que me desafia, todos os dias, a transformar em símbolos vocálicos e consonantais passíveis de compreensão, as minhas ideias. Tudo carregado de muito sentimento, claro, fundamental para que se atinja o coração do leitor que não é tão frio e calculista como o cérebro que não entende das paixões humanas cantadas pela literatura.

Que me perdoem, pois, os deslizes, esses gramáticos apaixonados para quem a verdadeira poesia se esconde nas regras que regem a oração subordinada. Os mesmos que não redigiram uma só linha para lembrar que Saramago escreveu um livro inteiro sem pontuação.

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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