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Ser nada social
Por Rodolfo de Souza
12/04/2015 | 07:00
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É manhã e, preso no engarrafamento, vejo um homem, morador de rua que vem pelo passeio. Leva-me, o sujeito, a fazer algumas considerações e conjecturas a respeito da vida de quem, como eu, corre atrás do sucesso. Sucesso no trabalho, consequente garantia de dinheiro maior; sucesso no amor, certeza de cama melhor; sucesso na vida social, sinônimo de bajulação. É preciso, pois, que resulte em sucesso, qualquer coisa em que se bote a mão. Muito natural!

Sujo e maltrapilho, aquele homem carrega um saco, ao que tudo indica, cheio de pertences que, de alguma forma, lhe são caros, embora provavelmente não cheguem a constituir objeto de desejo de quem viaja de carro.

Mas é o seu tesouro, afinal, tão caro como qualquer veículo que ali trafega, ou ainda, que fica parado, porque agora tudo é congestionamento, tudo é paciência. A vida, sempre tão cheia de pressa, segue parada. Meio paradoxo isso, admito.

Só ele caminha em meio ao caos, agarrado ao seu tesouro, com ambas as mãos como a protegê-lo do salteador que pode, a qualquer piscada, arrebatá-lo, tal qual faria com uma corrente de ouro.

Transita, assim, determinado como se alguém num endereço certo o aguardasse para deliberar acerca de que rumo tomar nos negócios ou em importantes movimentações financeiras. Uma pessoa que corre apressada para o trabalho, não consegue entender ou sequer imaginar o que lhe vai na mente. Na verdade, não pensa sobre isso, sequer o percebe.

Mas ele caminha sem olhar para os lados. Seu semblante sugere preocupação. Não consigo atinar o motivo que o leva a se armar de tamanho determinismo. Indiferente ao movimento, anda pela rua. Talvez a pressa ou o hábito da indigência o tornem assim, apático. Tem também a questão do abismo social que o separa de qualquer um que trafega com um carro, por mais simples que seja o veículo. Isso, de alguma forma, lhe é perturbador, sobretudo, quando se lembra de sua sina de abordá-los no semáforo, para angariar algum trocado. É possível que lhe doa na alma aquele trânsito hostil. Sim, porque há de ter uma alma. Por isso, convém abaixar a cabeça e apertar o passo. Até porque, por não ter a consciência de que é invisível, sente na pele o fio da navalha dos olhares que imagina dirigidos a ele, o homem do saco que habitou a imaginação medrosa da criança de outrora, e que foi usado, por muito tempo, como um meio de se conter a manha. Hoje, a molecada não se deixa intimidar diante da miséria. Acostumara-se a ela, afinal.

O semáforo é demorado, a fila, grande, e chego a sentir uma pontinha de inveja daquele que não se desespera com o engarrafamento conspirando contra o relógio, que não se aborrece com o mal humor crônico, que não tem a quem dar satisfações dos seus atos, que perambula sem destino aparente... Que não se chateia com as contas que não tem para acertar, com as pressões sociais, com os compromissos, com os ossos do ofício... Mesmo assim, segue apressado. Vai longe agora. Percebo no retrovisor a enorme bagagem que lhe encobre as costas, costas que não carregam qualquer outro peso além daquele.

Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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