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Em 30 anos, 64 mil na região são registrados sem o nome do pai

Casos envolvem questões jurídicas e emocionais; Justiça auxilia no reconhecimento da paternidade

Por Vanessa de Oliveira
18/06/2017 | 07:54
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Celso Luiz/DGABC


A filiação está na certidão de nascimento, no RG e em outros documentos. Porém, não está completa para boa parcela da população. Levantamento feito pela Arpen-SP (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo), a pedido do Diário, aponta que, nos últimos 30 anos, das 1.348.162 pessoas que foram registradas nas sete cidades do Grande ABC, 64.072 não receberam o nome do pai no registro, o equivalente a 4,75% dos nascidos.

São Bernardo lidera o número, com 15.866 pessoas, seguida por Diadema (15.535); Santo André (14.884); Mauá (11.326); São Caetano (3.344); Ribeirão Pires (2.316) e Rio Grande da Serra (801).

“O reconhecimento da paternidade biológica na certidão de nascimento é direito fundamental e personalíssimo dos filhos. O artigo 1.596 do Código Civil diz que ‘os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação’. Outrossim, o artigo 227 da Constituição, de 1988, posiciona-se no sentido de que ‘a criança deve ter assegurado o respeito e a dignidade, sendo vedada qualquer forma de discriminação’”, explica a professora da Faculdade de Direito de São Bernardo e especialista em Direito Civil Célia Nilander. “Portanto, a negativa de registro civil destes filhos seria caracterizado como ato atentatório aos preceitos legais mencionados, e também causaria discriminação a estes filhos, o que é proibido por lei.”

O Oficial do 1º Registro Civil de Santo André Marco Antonio Greco Bortz lembra que as consequências jurídicas deste fenômeno são várias. Segundo ele, em um primeiro momento, por exemplo, a exigibilidade da pensão alimentícia depende do reconhecimento formal da paternidade. Afinal, a mãe não tem como fazer essa exigência enquanto o nome do pai biológico não constar no registro do filho. “Este é um fator importantíssimo, a garantia da exigibilidade de recursos essenciais para a criança depende da regularização da paternidade no assento de nascimento. A pensão devida a título de alimentos não abriga somente a alimentação propriamente dita, mas todos os cuidados que a criança necessita, como vestimenta, moradia, saúde, educação, lazer etc. Trata-se de um direito fundamental e de primordial importância.”

Outra consequência jurídica da falta do reconhecimento da paternidade, segundo Bortz, diz respeito aos direitos sucessórios. “Sem que o nome do pai esteja consignado expressamente no registro de nascimento do filho, este não terá como exigir a sua parte na herança se houver o falecimento do genitor. Existe outro lado dessa moeda, pois os pais idosos que necessitem de alimentos ou cuidados especiais, que são exigíveis dos filhos, não terão como reclamá-los daqueles que não foram reconhecidos no registro.”

O oficial aponta ainda que outras questões relevantes em relação à pessoa são “aquelas de origem psíquica, relacionadas às relações afetivas, à organização familiar, à educação pessoal e da importância da figura paterna nesta seara, de ordem social.”

O apontamento é partilhado pela professora Angélica Capelari, do curso de Psicologia da Universidade Metodista de São Paulo. “A ausência do nome do pai na certidão de nascimento torna concreto algo que poderia ser somente abstrato: o sentimento de abandono. Quando há o nome na certidão, existe a esperança de ter a pessoa, de fato, como pai algum dia. Além disso, para que possamos nascer, precisamos da contribuição de óvulo e espermatozoide. Essas informações fazem parte da nossa história, da história da nossa origem. Saber de onde viemos, a nossa origem, faz parte do nosso desenvolvimento enquanto seres humanos.”

Registros sem o nome da mãe ou do casal é menor

O levantamento da Arpen-SP (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo) também mostra o número de registros de pessoas sem o nome da mãe ou do casal nos últimos 30 anos. Na primeira situação, as sete cidades contabilizam 2.797 casos; no segundo, em que não há o nome nem da genitora nem do genitor, 6.785.

De acordo com o Oficial do 1º Registro Civil de Santo André Marco Antonio Greco Bortz, as situações que envolvem a ausência do nome materno são de assentos lavrados entre 1987 e 1988, em sua maioria, antes da Constituição de 1988. “Naquele tempo não se admitia consignar o nome do pai no registro se este fosse casado com outra mulher (nesta hipótese o registro só tinha o nome da mãe). E o contrário também ocorria, pois se a mãe fosse casada com outro homem que não o pai biológico do filho, o registro não podia ter o nome da mãe. Então acontecia de se efetuar a lavratura consignando apenas o nome do pai biológico”, comenta. 

Essa situação foi superada com a Constituição de 1988, mas ainda existem alguns registros anteriores à promulgação com esta “configuração estranha”, ou seja, registro de nascimento com o nome do pai e sem o nome da mãe. “Aqueles (registros) em que estão ausentes ambos os pais tratam de assentos de nascimento de expostos, ou de crianças abandonadas. Em termos de consequências jurídicas e sociais esta é a situação mais grave, a de abandono total da pessoa natural”, finaliza.

Programa do Ministério Público busca reconhecimento de paternidade

Desde 2005, o MP-SP (Ministério Público de São Paulo) atua com programa que possibilita o reconhecimento paterno a cidadãos cujos documentos não têm o nome do pai. A iniciativa foi idealizada pelo promotor de Justiça Maximiliano Roberto Ernesto Fuhrer, da Promotoria de São Bernardo, ao descobrir que tinha dez mil crianças em idade escolar na cidade nesta situação. 

“Havia um constrangimento das mães na abordagem desse assunto tão delicado e, quando disponibilizamos fichas na escola para que elas e os alunos preenchessem com informações que pudessem nos levar ao pai, me pareceu inconveniente, porque causava bullying. Então, precisava haver um jeito mais delicado de tratar isso, que ficasse à disposição da mãe quando ela quisesse”, lembra.

Foi aí que o promotor decidiu levar a ideia ao Poupatempo. Na unidade de São Bernardo, a primeira, a ação teve início em novembro de 2016. Logo que chega ao local, a pessoa se depara com um cartaz sobre o assunto. 

O atendimento, em sala reservada, acontece das 7h às 19h. É preciso preencher uma ficha, e a informação imprescindível para a busca do pai é o nome completo. Apontar empresa onde tenha trabalhado auxilia na localização. Também são necessárias cópias das certidões de nascimento do filho e da mãe. Tudo será encaminhado à Promotoria, que dará direcionamento à investigação do paradeiro do pai. Ao ser localizado, ele é convocado para comparecer à Promotoria e ser ouvido. Caso esteja em outra localidade, é solicitada uma carta precatória para que a oitiva seja feita onde ele estiver. 

Quando o homem tem dúvidas sobre a paternidade, é encaminhado à Defensoria Pública, que conta com programa de teste consensual de DNA. Do contrário, se concordar com a paternidade a ele atribuída, é feita a requisição de averbação no registro de nascimento do filho. O interessado recebe, então, a certidão de nascimento com a informação atualizada.

É o caso da cabeleireira de Mauá Marlene Maria da Conceição Mattos, 53 anos, que amanhã pegará a certidão de nascimento com a inclusão do nome do pai.

“Meus pais foram casados durante 12 anos, mas quando eu tinha 9 meses ele foi embora. Por meio de conhecidos, consegui o telefone de uma tia, que passou o contato dele e nos reencontramos há dez anos. Ele achou que minha mãe havia colocado seu nome no registro”, conta. “Sofria bullying, preconceito, a sensação era de desprezo, abandono, uma coisa muito triste”, acrescenta.

Marlene soube do programa do Poupatempo, mas, antes de ir até lá, falou com o pai. “Não queria nada forçado e ele falou que era o que mais queria”, celebra.

Até o dia 12, o Poupatempo de São Bernardo fez 341 atendimentos, e a Promotoria já entregou 45 certidões com a filiação completa. A ação também é feita nos Poupatempo Santo Amaro, Luz, Lapa e Cidade Ademar. A ideia é estender a todas as unidades do Estado, mas não há previsão. Neste mês, a Prefeitura de São Bernado apoiou a iniciativa, ampliando a divulgação e dispondo de fichas de preenchimento em equipamentos públicos.

“Comecei esse programa pensando no aspecto jurídico, no entanto, existem outras coisas envolvidas muito mais importantes, como o aspecto emocional. O jurídico, talvez, seja o menos importante”, salienta Fuhrer.




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