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'Cruz e Sousa, o Poeta do Desterro' tem sessao emocionada
Por Do Diário do Grande ABC
09/01/2000 | 17:02
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Havia espectadores chorando no fim da sessao especial de "Cruz e Sousa, o Poeta do Desterro", realizada na manha deste sábado. O local era o reformado Cine Odeon, na Cinelândia, que funcionou como centro do Festival do Rio, em 1999. Atendendo a um pedido dos líderes da comunidade negra do Rio, o diretor e produtor Sylvio Back fez a exibiçao deste sábado. Mas nao fez uma sessao fechada. Foi multirracial e cultural. Negros e brancos choraram, irmanados na mesma emoçao diante do resgate que Back faz da vida e da obra do maior poeta negro da língua portuguesa.

É um belo filme. Cruz e Sousa é um dos grandes injustiçados da literatura brasileira. Maior nome do simbolismo no país, o filho de escravos alforriados viveu sempre estigmatizado, artística e socialmente. Convencido de que só a poesia pode resgatar a obra de um poeta, Back criou um poema visual em 34 estrofes que dramatizam poemas e cartas como mote narrativo. Logo no começo, letreiros contam rapidamente a história da vida e morte do poeta nascido em Nossa Senhora do Desterro, nome original de Florianópolis, daí a dupla apropriaçao que Back faz. Cruz e Sousa é o poeta do Desterro porque lá nasceu, mas também porque viveu sempre desterrado. Cabe acrescentar que o cartaz, sugestivamente, apresenta mais três versoes internacionais para esse título: "The Banished Poet", "El Poeta Proscrito" e "Le Poète Banni".

Um dos grandes atores negros do país e um ativista sempre chamado a manifestar-se quando o assunto é racismo, Milton Gonçalves resumiu sucintamente a opiniao sobre o que vira no fim da sessao de "Cruz e Sousa": "É ótimo." Mais predisposta a falar, Ruth de Souza, a lendária atriz que foi para o Festival de Veneza, nos anos 50, com "Sinhá Moça", uma produçao da Vera Cruz e, desde entao, desenvolveu a carreira no cinema, no teatro e na televisao, confessou, entre lágrimas, que aquele era o filme mais bonito que viu nos últimos tempos e nao apenas entre as produçoes nacionais.

Cruz e Sousa sempre foi uma referência forte para Ruth, que recitou, publicamente, os poemas dele. Ela resumiu a questao numa frase: "Como um branco, o homem mais branco que conheço, conseguiu fazer esse filme que vai tao fundo na dissecaçao da alma negra?" Ela própria respondia: "É o mistério da arte, Cruz e Sousa é arte e o Sylvio, um verdadeiro artista." Era o que também dizia Maria Adeal. Há pouco tempo, ela tentou montar um espetáculo baseado nas poesias do mestre simbolista. Chocou-se mais do que com um muro de hostilidade e indiferença, com um completo desconhecimento das pessoas, dos eventuais patrocinadores e colaboradores, sobre quem era Cruz e Sousa.

"O filme faz um trabalho de resgate sensacional; estou emocionada", dizia ela. Outra que se dizia emocionada - e manifestava isso nos olhos ainda cravejados de lágrimas - era a atriz Zezé Motta, a Xica da Silva de Cacá Diegues. Zezé lembrou que fez um curta com uma diretora de Santa Catarina sobre Cruz e Sousa, mas ele nao foi muito bem recebido pela crítica nos festivais. Ela espera, agora, que Cruz e Sousa receba o reconhecimento que Sylvio Back merece. Sua emoçao, como ela contou, era dupla: "O filme tocou-me muito; acho que essa vontade de ir fundo na obra do Cruz e Sousa nao é só artística; é uma coisa política, também, e eu acho que essa paixao é que falta no Brasil."

Emoçao pelo filme, pelo personagem, mas também porque, pela primeira vez, ela via impresso num filme o agradecimento ao Centro Brasileiro de Informaçao e Documentaçao do Artista Negro (Cidan), que dirige no Rio. Nele, estao todos os nomes de artistas negros no país. O centro ajuda a colocá-los no elenco de filmes, peças e novelas. "Muita gente que está no filme foi indicada pela gente; agradeço profundamente ao Sylvio por esse trabalho tao sensível à contribuiçao da cultura negra à história do país." Era o que também destacava Da Gama, o guitarrista do Cidade Negra, de onde surgiu Toni Garrido para ser o Orfeu de Cacá Diegues, na adaptaçao da peça de Vinícius de Morais que transpoe o mito grego para o morro carioca.

"Já conhecia o Cruz e Sousa e possuía algumas informaçoes sobre sua vida, mas acho muito rica essa história da hostilidade que ele colheu em sua época, até mesmo por parte da Academia Brasileira de Letras." Como Back nao se cansa de dizer Cruz e Sousa era um negro altivo e orgulhoso da sua raça e arte. Nao podia ser aceito pela academia criada por Machado de Assis, um mulato que queria ser inglês, nem por aqueles partidários do branqueamento da cultura brasileira. Cruz e Sousa foi pioneiro na questao da negritude no país. "Sua voz vai na veia do negro", como diz Back. Sua poesia lunar será sempre uma metáfora sobre a tragédia de ser negro no Brasil. "Além de toda essa discussao política que levanta, o filme é fascinante como revelaçao e amostragem da poesia do Cruz", continua Da Gama. Ele afirma: "Vivam os poetas brasileiros, brancos, negros nao importa a cor; viva a poesia que expressa a alma do brasileiro."

Back nao foi o único a viver o momento de glória no fim da sessao de "Cruz e Sousa, o Poeta do Desterro". "Estou em estado de raça", ele diz. O filme foi saudado com aplausos entusiásticos e gritos de "bravo" que se repetiram por bastante tempo. Depois, formou-se a longa fila para os cumprimentos. Todos queriam abraçar e felicitar Kadu Carneiro, o Cruz e Sousa de Sylvio Back, e Maria Ceiça, que faz Gavita, seu grande amor. Num elenco de grandes atores negros, a surpresa é descobrir uma estreante, uma deusa chamada Danielle Ornelas, à qual Back chegou por meio de Zezé Motta. Maria estava linda, iluminada pela alegria da satisfaçao. "Estava com medo dessa sessao, mas, agora, vejo que nao tinha motivo; o público foi muito acolhedor, muito generoso; esse entusiasmo das pessoas é uma coisa muito gratificante", dizia. Ator inspirado, Carneiro diz em cena, com convicçao, os diálogos baseados nos poemas de Cruz e Sousa. Ele está cheio de expectativa, mas também nao esconde uma ponta de inquietaçao quando fala no lançamento de "Cruz e Sousa" nos cinemas, previsto para março ou abril. "Um filme como esse, sobre poesia, corre o risco de ser discriminado como a obra do próprio retratato; espero que tenha uma distribuiçao à altura de suas qualidades, que nao seja marginalizado e jogado no gueto dos circuitos alternativos; temos de ter confiança no povo brasileiro, que tem agora sua chance de saldar a dívida com essa figura extraordinária que foi o Cruz."

Em vários de seus filmes Back foi crítico, fazendo filmes, quase sempre documentários, desmistificadores sobre episódios controvertidos da história brasileira. Aqui, ele continua polemizando, mas no sentido inverso: todo o movimento do filme se dirige para o momento em que Cruz e Sousa é posto, enfim, no pedestal que merece. Mesmo fazendo esse movimento, o filme nao é, como Back se apressa a dizer, uma hagiografia. Back confessa que tem dificuldade para falar de Cruz e Sousa: "É meu melhor filme, estou apaixonado." É, realmente, o melhor filme dele, um dos mais belos do cinema brasilero recente.




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