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O que será de ti, Mesopotâmia?
Do Diário do Grande ABC
01/06/2017 | 07:00
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Na vasta planície em que se configura a tela da TV, o grupo de pessoas caminha sob o sol escaldante, todos sedentos e famintos. A televisão é, sem dúvida, companhia indispensável neste domingo cinzento e frio em que a simples visão de local, quente, soa irreal. E é através dela que observo aquela gente, sem, contudo, sentir a mesma aflição de que é vítima. Sorte minha, esta que me lançou em Terras Brasilis quando do meu nascimento. Sinto mesmo muito orgulho do meu chão, este vasto território abençoado por Deus, embora também me entristeça saber que o sistema político, sob o jugo do qual vive esta terra, tencione botar a nocaute este meu sentimento.

Frustrações à parte, minha atenção nesse instante em que me encontro tranquilo e descontraído se mantém, toda ela, voltada para aquela parcela da população iraquiana dispersa pela guerra que vem dizimando as cidades com seus habitantes. As mulheres vestem preto até o teto da cabeça, o que por certo irradia mais calor. Que horror! Os bebês... Sim, porque há bebês, desfalecem e têm os rostinhos cobertos pelas moscas que passeiam por eles, farejando a morte. Mas quem, afinal, haveria de pensar na maternidade em ambiente tão insalubre e hostil? Eles, homens e mulheres de lá, por certo que pensam. Pronto, finalmente tem início a minha aflição que as moscas no rosto das crianças se encarregam de promover.

Mas chegou a hora de aproveitar a calma discreta e empreender caminhada. As pessoas andam, porque percebem um ligeiro cessar-fogo. Os soldados que disparam fuzis e metralhadoras contra o inimigo, na verdade disparam contra tudo que se move, inclusive, os civis, entes invisíveis que correm e cobrem com as mãos as cabeças, quem sabe para livrá-las dos projéteis certos e incertos, que agora, por um breve momento, se calam. E o soldado, ator de papel importante neste palco de guerra, é também objeto desta reflexão, tendo em vista o infortúnio que lhe marcou a vida de combatente. É outra vítima. Afinal, se lhe fosse dada a oportunidade de escolher entre uma arma que mata o semelhante e uma enxada que prepara a terra para o plantio, estou certo de que trataria logo de apanhar o chapéu, ou turbante, para proteger do sol a cabeça e se entregaria à lida. Ao invés disso, porém, encontra-se entregue de corpo e alma a um campo de batalha, que não desejou intimamente, para exercer o seu ofício de matador e, às vezes, de morto nesta eterna luta inglória.

E eu sigo assistindo ao programa jornalístico, do qual, por meio do corajoso trabalho de dois outros lutadores, repórter e cinegrafista, recebo as imagens com excelente definição e cores vivas que realçam ainda mais o vermelho intenso do sangue esparramado.

E a cena que se segue tem como protagonista um homem velho que implora por água. O silêncio ao meu redor torna ainda mais pungente e inquietante o seu lamento que me chega por meio da legenda em sinal HD digital. Parece até que ouço a palavra dita em bom português. Chego a ter sede também. Pronto, começo a sentir os efeitos que a fértil imaginação de escritor torna real. É como se andasse com aquelas pessoas por um terreno difícil, cheio de escombros de prédios e de carros retorcidos, por toda parte.

E o cheiro de sangue é outro ingrediente que apavora. Mas é preciso caminhar. Logo ali encontraremos a salvação. Então, a esperança, combustível que nos mantém andando, de novo se acenderá nos peitos aflitos. Quem sabe depois possamos utilizar uma embarcação precária rumo ao sonho e morrer no caminho.


Rodolfo de Souza nasceu e mora em Santo André. É professor e autor do blog cafeecronicas.wordpress.com

E-mail para esta coluna: souza.rodolfo@hotmail.com. 




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