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Médicos têm poder de decisão sobre uso da cloroquina

Medicação liberada pelo Ministério da Saúde contra Covid está à disposição dos profissionais na região; eficácia não é comprovada

Vinícius Castelli
Do Diário do Grande ABC
21/05/2020 | 00:01
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Denis Maciel/DGABC


Em meio à pandemia que já matou mais de 18 mil brasileiros está o debate sobre o uso da cloroquina, medicação fortemente defendida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mesmo sem estudos que comprovem sua eficácia no tratamento da Covid-19. Ontem, normativa publicada pelo Ministério da Saúde passou a recomendar o uso do remédio para pacientes em todos os estágios da doença e não mais só para os casos mais graves. A decisão deve exercer pressão nos médicos para uso da substância.

Fato é que, independentemente de o Ministério da Saúde recomendar, os médicos contam com poder de decisão e podem escolher se devem usar ou não a medicação, assim como a hidroxicloroquina, derivada da cloroquina com menor toxicidade.

No Grande ABC, as cinco cidades que contam com leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) na rede pública – não fazem parte da lista Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra – tem a medicação. No entanto, são unânimes em dizer que cabe ao profissional decidir o uso independentemente da complexidade do caso.
Em São Caetano, por exemplo, o medicamento está disponível nos equipamentos públicos, mas a decisão de usar ou não é do médico, como explica a secretária de Saúde do município, Regina Maura Zetone. “Nós deixamos desde o início livre para que o médico que quisesse prescrever, que se achasse seguro, que deveria prescrever. Deixamos em liberdade”, afirma.

Regina explica que alguns médicos prescrevem, inclusive, para pacientes com a doença leve, em ambulatório. “No caso grave, o paciente não tem alternativa. (Se) usa todas as armas que existem. Usa o anticoagulante, anti-inflamatório, corticoide e também a hidroxicloroquina. Não é um medicamento de protocolo para usar em todos os pacientes. Temos à disposição e o médico que acha que deve usar, usa sim”, explica a secretária.

Ainda segundo Regina, que é ginecologista, São Caetano não observou até agora benefícios da medicação no tratamento de pacientes com Covid-19. “O que faz diferença é a assistência que o paciente recebe, a estrutura na UTI, os outros medicamentos, os respiradores e todo o suporte de terapia intensiva que ele recebe. Isso que faz a diferença e não a hidroxicloroquina.”

Em Santo André, a Secretaria de Saúde informa, em nota, que o medicamento consta na farmacopeia da cidade, não sendo vedada sua prescrição, apesar de reconhecer que sua eficácia ainda não é comprovada. “Todos os estudos científicos em grandes centros hospitalares no mundo não demonstraram resultados positivos com o uso da cloroquina em nenhuma fase da evolução clínica, a comparar com o suporte clínico convencional. Em alguns deles houve maior ocorrência de efeitos colaterais graves do que melhora clínica com o uso da cloroquina.”

A Prefeitura de São Bernardo, por meio da Secretaria de Saúde, esclarece que existe protocolo que autoriza a prescrição da hidroxicloroquina para pacientes com diagnóstico de infecção por Covid-19, que estejam internados em hospitais municipais ou aguardando transferência em UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) da cidade, sob supervisão médica. “Sempre que o paciente for utilizar o medicamento, deve assinar termo de consentimento, informando que a cloroquina pode causar algum benefício no tratamento em pacientes com o coronavírus, bem como os seus efeitos colaterais.”

Em Diadema, segundo a Prefeitura, a utilização da cloroquina ou da hidroxicloroquina tem sido realizada em casos confirmados e a critério médico, como terapia adjuvante no tratamento de formas graves e em pacientes hospitalizados. “O médico tem autonomia para prescrever o que avalia ser melhor para o paciente, assumindo as responsabilidades decorrentes de sua prescrição”, explica. A Prefeitura enfatiza que a eficácia e a segurança dos dois medicamentos em pacientes com Covid-19 ainda estão em estudo.

Mauá também conta com a medicação e está fazendo, por ora, o uso da cloroquina em pacientes com Covid-19 em estado grave. Com relação ao médico que está na linha de frente no combate à pandemia, segundo a Prefeitura, se o profissional entender que a droga, ou outro medicamento, possa trazer benefícios ao paciente, ele pode aplicar, desde que com o consentimento familiar.


OMS e especialistas criticam medida

Logo após o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) liberar o uso da cloroquina para pacientes com casos leves de Covid-19, por meio de normativa assinada pelo ministro da Saúde interino, o general Eduardo Pazuello, a OMS (Organização Mundial da Saúde) se manifestou e defendeu que a medicação não tem eficácia comprovada. “A hidroxicloroquina ou a cloroquina até agora não se mostraram eficazes contra a Covid-19”, reforçou o diretor executivo, Mike Ryan.

As manifestações contrárias ao uso das substâncias também surgiram no Brasil. O presidente da Associação Paulista de Medicina, José Luiz Gomes do Amaral, disse que, independentemente da sugestão do governo, cabe ao profissional a escolha. “O médico não prescreve em razão desse ou daquele ministério, mas a partir da literatura médica”, explica. “Não há proibição nem obrigação legal de prescrever HCQ (hidroxicloroquina). Há limitações éticas, visto que não tem eficácia comprovada para Covid-19. Além disso, os efeitos adversos são relevantes. Assim, a HCQ tem sido usada em protocolos experimentais e com o consentimento informado do paciente”, afirma.

Amaral lembra que todo medicamento tem efeito colateral. “Os médicos avaliam os efeitos e os benefícios que o medicamento traz. Cloroquina tem efeitos adversos, principalmente para o coração”, ressalta. “Não há aquela possibilidade de: ‘se não fizer bem, mal não faz’. Isto não existe”, reforça. “Nenhum médico é obrigado a usar. Se eu administrar e a pessoa tiver arritmia (cardíaca) grave, e acontecer o pior, eu tenho que assumir”, frisa.
Outros especialistas também são unânimes em avaliar que não há evidência científica que embase a utilização da cloroquina como tratamento para a Covid-19; nem nos casos graves e, muito menos, nos estágios iniciais da doença.

“Acho que (a normativa)vai gerar grande pressão sobre os médicos, não só pela recomendação em si, do governo, mas, sobretudo, pela pressão do público leigo, pacientes e familiares, pela prescrição da droga”, avalia o especialista em terapia intensiva Jorge Salluh, do programa de pós-graduação em clínica médica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

De acordo com a Sociedade Brasileira de Imunologia, a escolha da terapia com cloroquina ou hidroxicloroquina vem na contramão da experiência mundial e científica da pandemia. “Este posicionamento não apenas carece de evidência científica, além de ser perigoso, pois tomou aspecto político inesperado”, informou em comunicado assinado por 22 especialistas. “Nenhum cientista é contra qualquer tipo de tratamento, somos todos a favor de encontrar o melhor tratamento possível, mas sempre com base em evidências científicas sólidas.”




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