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Crianças entram na mira da indústria cultural
João Marcos Coelho
Especial para o Diário do Grande ABC
06/05/2001 | 19:12
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  A impotência que pais e mães sentem com relação ao bombardeio que seus filhos sofrem diariamente por parte da TV (Cartoon Network e agora Disney Channel), do McDonald’s e da propaganda consumista em geral é total. Pouco ou quase nada podem fazer, mas têm muitas dúvidas sobre se estas influências são ruins para as crianças. Um livro excepcional, Cultura Infantil – A Construção Corporativa da Infância (Record, 415 págs., R$ 45), que acaba de chegar às livrarias brasileiras, promete jogar algumas luzes importantes para sacudir corações e mentes de pais e mães verdadeiramente preocupados com a formação de seus filhos.

Shirley Steinberg e Joe Kincheloe, os dois editores desta coletânea de ensaios variados, falam, é claro, da realidade norte-americana, mas que diferença pode haver entre a cultura infantil nos Estados Unidos e no Brasil? Só de grau – já que eles exibem hoje tanto os benefícios quanto as mazelas por conduzirem com mão de ferro uma cultura infantil que rebate em nós com enorme impacto.

Pinky e o Cérebro, Pokémons, Ronald McDonald, O Rei Leão, A Bela e a Fera: todos estes personagens e filmes estão absolutamente presentes no dia-a-dia das crianças brasileiras. Sem dúvida, os EUA aprenderam, desde os tempos da Segunda Guerra, que uma das ferramentas mais eficientes para se dominar um país é pelo viés cultural (Zé Carioca, o personagem brasileiro criado por Disney por encomenda do governo norte-americano em sua política de boa vizinhança com a América Latina nos anos 40, é só um exemplo, ao lado de Carmen Miranda, levada a toque de caixa para Hollywood na mesma época).

Nos idos da Segunda Guerra e da Guerra Fria com a ex-URSS, a tarefa era dirigida pelo próprio governo dos EUA, que usava as empresas de entretenimento como intermediárias. Agora, na virada do milênio, todos, adultos e crianças, vivem sob os padrões ditados pela indústria cultural. E aqui não se trata mais de ofensivas oficialescas, mas das grandes corporações que elegem o consumo como deus máximo e objetivo a ser incessantemente inoculado nas pessoas. E onde este processo perverso começa? Com as crianças, do modo mais cruel e eficiente possível. É isso que o livro mostra de forma contundente em 14 ensaios, que esmiúçam os valores subliminares de filmes como Esqueceram de Mim, de desenhos como Power Rangers, incluindo um excelente histórico iniciado com Vila Sésamo, que a Globo está ressuscitando.

A tese de Steinberg e Kincheloe é simples: a educação das crianças não está mais nas mãos da escola e da família, como antigamente. Hoje, a televisão e o cinema (leia-se Disney), os videogames, os fabricantes de brinquedos e os fastfoods (McDonald’s) são os verdadeiros responsáveis pela formação cultural e educacional das crianças. O perigo é que elas moldam as crianças segundo suas metas mercadológicas. Assim, por exemplo, o McDonald’s busca identificar-se com os valores da família bem posta de classe média. Ray Kroc, o fundador do império que hoje domina o mundo, dizia que não desejava vender hambúrgueres, mas sim a própria América para os americanos. E, convenhamos, é admirável como no Brasil a propaganda foi bem adaptada para vender os mesmos conceitos às nossas crianças.

A democracia do hambúrguer imutavelmente igual, seja aqui, seja em Moscou, é só aparente. A lanchonete quer que as pessoas a freqüentem como se estivessem em casa (mas sentar nos bancos é um suplício, e isto é proposital, para que as pessoas fiquem pouco tempo lá e o giro seja maior). Kroc, coincidência, serviu no Exército com Walt Disney e, como o cineasta, mentiu sobre sua idade (e, cá entre nós, achava Disney “um pato estranho, que não gostava de garotas”, mas isso não vem ao caso). Num artigo muito bom, Henry Giroux analisa alguns filmes da Disney, como A Bela e a Fera, O Rei Leão e Aladdin, desmontando algumas posturas ideológicas condenáveis e nefastas para as crianças. Em Aladdin, por exemplo, a canção inicial, Arabian Nights, descreve a cultura árabe com um tom decididamente racista: “Oh, eu venho de uma terra/de um lugar distante/ onde vagam as caravanas de camelos/ Onde cortam fora sua orelha/ se não forem com a sua cara/ É bárbaro mas, ei!, é o nosso lar”.

Corria por fora nos noticiários, quando o filme foi lançado, a Guerra do Golfo. Coincidência? Não, acredite. Aliás, o verso que fala no costume de cortar a orelha do outro foi substituído depois de muitos protestos de entidades, ONGs e imigrantes árabes.

Já em O Rei Leão, o machismo, sempre recorrente nos valores das grandes corporações de consumo, é flagrante. Quando Mufasa, o rei, morre, e Scar, o perverso, assume o poder, as leoas simplesmente passam a obedecer ao novo amo. Os exemplos machistas podem multiplicar-se em praticamente todos os filmes da Disney, tanto quanto os de racismo explícito, como enumera Giroux.

O que fazer? Para os pais, não há como ignorar nem muito menos tentar construir barreiras para impedir este consumo cultural pelas crianças. Mas sempre é possível estar alerta, acompanhar os filhos, estar próximo deles e ir desfazendo, a cada passo, tais mecanismos perversos de sedução das grandes corporações. Não se pode subestimar o poder e o papel fundamental que Disney, Cartoon Network (aliás, líder inconteste na primeira medição de audiência feita pela Nielsen no segmento de TV a cabo). Por isso, leituras como a deste livro podem constituir ferramenta indispensável de apoio para os pais conscientes. Mas, como já dizia aquele comercial, não basta ser pai nem mãe. É preciso participar e viver em sintonia com a maravilhosa cabecinha das crianças.




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