Cultura & Lazer Titulo Literatura
Sertão virou pura memória inventada
Melina Dias
Do Diário do Grande ABC
09/08/2009 | 07:02
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Nesta semana foram conhecidos os vencedores da segunda edição do Prêmio São Paulo de Literatura, concedido pelo governo do Estado. Em um País em que novos talentos literários são menos importantes do que pseudocelebridades até que houve um certo barulhinho na mídia. O motivo? O mesmo que move o mundo: dinheiro. É que o valor total da premiação - R$ 400 mil - devolve um pouco da dignidade perdida pela categoria ao longo de décadas de falta de incentivo. Triste, porém verdadeiro. Se serve de consolo, não somente os brasileiros se afastam do mundo das letras. O chamariz de polpudas premiações a criações literárias funciona em países como Espanha, Portugal e Estados Unidos. É o que confirma o laureado na categoria melhor livro do ano, Ronaldo Correia de Brito, autor de Galiléia (Ed. Objetiva). O cearense Correia de Brito, nascido em 1950, concilia as carreiras de médico, dramaturgo, roteirista de cinema e escritor. "Finalmente, um Ronaldo conseguiu ganhar dinheiro no Brasil sem precisar jogar futebol", ironizou ao receber o troféu e o prêmio de R$ 200 mil (os outros R$ 200 mil foram para o escritor estreante). A seguir, a entrevista com o autor:

DIÁRIO - Em entrevista, o escritor israelense Amós Oz, que mora em uma cidade no deserto de Neguev, disse que recorria a caminhadas pela vastidão que o cercava para alimentar sua literatura. O senhor se apropria de elementos do sertão para criar?
RONALDO CORREIA DE BRITO - Nasci numa fazenda chamada Lagedos, na região mais seca do Ceará, os Inhamuns. É o meu deserto; semelhante ao de Amós Oz. Ele nunca me deixou. Eu nunca consegui deixá-lo. Sem essa paisagem que me nutre, eu não teria me tornado um escritor.

DIÁRIO - O senhor declarou que o sertão é um espaço de memória confundido com o urbano. Pode explicar?
CORREIA DE BRITO - O sertão que me alimenta é pura memória inventada. Ele já não existe como o vi na infância. Nem como o imaginou Guimarães Rosa. A épica sertaneja desapareceu. No seu lugar, restou uma paisagem desolada, que se confunde com a periferia das cidades. É possível vislumbrar o sertão em São Paulo e não mais encontrá-lo nos interiores nordestinos.

DIÁRIO - Como incutir em um jovem leitor urbano, desses que acham que o leite vem da geladeira, a mítica em torno do sertão?
CORREIA DE BRITO - Isso não é possível, porque em boa parte do campo o leite também vem da geladeira. Os currais de vacas se esvaziaram e no lugar dos cavalos surgiram as motos. As pessoas assistem televisão, recebem Bolsa Família e os rapazes e as moças que estudam, acessam o MSN e o YouTube. Há uma falsa literatura sobre um sertão idealizado, que já não mais existe.

DIÁRIO - O senhor se considera um contista nato, mas sentiu necessidade de escrever um romance para ter mais espaço para discussões que não cabem no conto. Quais são essas questões em Galiléia?
CORREIA DE BRITO - A questão do não pertencimento, de estar fora do lugar, da busca de um lugar que não mais existe. Em Galiléia, há um constante movimento, uma migração contínua dos personagens. O escritor Isaac Bashevis Singer escreveu sobre o irmão dele, Joshua, que ele "deixara o velho para trás, porém não havia nada no novo que pudesse considerar seu". No meu romance, trato de deslocamentos e do vazio de não pertencer a nada.

DIÁRIO - Galiléia trata de jovens rapazes que migram do sertão, mas um dia devem voltar para tudo de que fugiram. Há algo de autobiográfico na descrição desse movimento?
CORREIA DE BRITO - Em parte sim, pois também sou um deslocado.

DIÁRIO - Sobre o ofício do escritor, o senhor teve influência de algo ou alguém?
CORREIA DE BRITO - Fui marcado pelos contadores de história e pela literatura clássica, sobretudo os romancistas russos. E tenho um diálogo permanente com o escritor argentino Jorge Luis Borges.

DIÁRIO - Escrever é alívio ou sofrimento?
CORREIA DE BRITO - As duas coisas.

DIÁRIO - Como foi colocar o ponto final em Galiléia?
CORREIA DE BRITO - Foi bem difícil. O livro não acabava nunca. Aí resolvi cortar 250 páginas. O romance ficou exato e tenso. Entreguei-o ao editor e livrei-me de ter de corrigir.

DIÁRIO - O senhor concilia diversas atividades, como dramaturgo e médico. Ainda clinica? Qual sua especialidade médica?
CORREIA DE BRITO - Sou um clínico. Não vejo minha vida sem a medicina.

DIÁRIO - Sobre o prêmio, o senhor acredita que esse valor monetário decente possa estimular novas gerações de escritores?
CORREIA DE BRITO - Em países como Espanha, Estados Unidos e Inglaterra os prêmios ajudam a revelar grandes livros e grandes escritores. São uma espécie de bolsa de valores. O Prêmio São Paulo valoriza a escrita e dá dignidade ao ofício de escritor.

DIÁRIO - Pergunta indiscreta, mas inevitável: tem planos para os R$ 200 mil?
CORREIA DE BRITO - Meu plano é gastá-los bem. Sou um bom gastador.

Vencedor estreante diz ‘coletar sucata'

O escritor premiado na categoria estreante é o gaúcho Altair Martins, por A Parede no Escuro (Record). Nascido em 1975, em Porto Alegre, já atuou como chargista, ator e contista. Seu primeiro romance levou sete anos para ser concluído e é resultado de seu mestrado sobre a teoria do romance. Sua ideia foi criar personagens a partir de características e do jeito de falar das pessoas. Para isso, usou um envelope para cada personagem. Dentro deles, foi guardando papéis com anotações e expressões próprias de cada um, formas de pensar e de se comunicar que são únicas e ajudam o leitor a identificar os personagens. "Sou um coletor de sucata", define Altair.




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