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Romance 'Coraline', de Neil Gaiman, chega ao Brasil
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
07/12/2003 | 17:21
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A primeira associação que se faz ao nome Neil Gaiman é a Sandman, série de histórias em quadrinhos longuíssima e dotada de sequazes em ambos os hemisférios (no Brasil, foi traduzida nos anos 90 pela editora Globo). Em vez de viver dos rendimentos de Sandman, o escritor assume outros projetos. Um deles, o romance Coraline (Editora Rocco, 160 págs., R$ 25), é agora lançado no Brasil, com tradução de Regina de Barros Carvalho. É literatura infanto-juvenil por necessidade de gênero, pois os elementos sombrios de Sandman ainda se fazem presentes.

O caroço ao qual se agarra o conteúdo dramático de Coraline é a identidade, o auto-conhecimento diante de uma alternativa mais sedutora de vida. Por falar em identidade, é bom tocar num assunto curioso e nada velado desde que J.K. Rowling tornou célebres as aventuras do garoto Harry Potter, um bruxo em formação que usa óculos, possui uma coruja de estimação e freqüenta uma escola de bruxaria. Sete anos antes de Harry Potter e a Pedra Filosofal (o primeiro livro da série), o britânico Gaiman publicara a graphic novel Livros da Magia, aqui lançada pela Abril Jovem e cujo protagonista, Timothy Hunter, era um aprendiz de mago que usava óculos, possuía uma coruja de estimação e freqüentava uma escola de bruxaria. Coincidência?

E de cópias trata também o novo livro de Gaiman. Cópias do cotidiano que se apresentam a Coraline, uma menina que está deixando as bonecas de lado, quando ela descerra a 14ª porta do apartamento para o qual acaba de se mudar. Mora com o pai e a mãe, que trabalham em casa e, apesar disso, consomem ou congelados preparados no microondas ou, mais raramente, extravagâncias gastronômicas do pai – pizza com abacaxi é uma delas.

Os pais reservam pouco tempo ao convívio com Coraline, que gasta os últimos dias das férias a explorar a vizinhança, toda detalhada já no primeiro dos 13 capítulos (algum sentido cabalístico?). Conhece as duas velhas ex-atrizes do apartamento abaixo – uma dupla bem à maneira das irmãs Bette Davis e Joan Crawford de O que Terá Acontecido a Baby Jane? – e o domador de ratos do andar acima. A decadência e a sabedoria convivem nesses personagens, os primeiros artífices do desafio à identidade de Coraline: os três, sem exceção, insistem em chamar a garota de Caroline, trocando o “a” pelo “o”.

Na seqüência de sua carreira de bandeirante de quintal, Coraline descobre 14 portas na casa. Treze das passagens estão destrancadas (novamente o numeral cabalístico). A última, ao ser aberta, revela primeiro uma parede de tijolos que a separa do apartamento ao lado e, depois, uma passagem para uma dimensão em que encontram-se cópias de sua mãe e de seu pai e modelos genéricos das velhas atrizes e do domador de ratos. Plágios de tudo que lhe é familiar, a não ser pelo detalhe de que esses clones possuem, no lugar dos olhos, botões pretos costurados às pálpebras.

A partir de então, a outra mãe quer ter Coraline para si e adota uma estratégia de Calipso (a ninfa que ofereceu a imortalidade a Ulisses para que o herói de Homero a amasse em vez de Penélope). Coraline poderá ter os brinquedos, as comidas e tudo o mais o que quiser se prescindir de sua própria realidade, de seus pais verdadeiros, de suas limitações. Ou seja, de si mesma.

Gaiman tem expressionismo em suas letras, reforçado em gravuras da lavra de Dave McKean. Se vai a Lewis Carroll procurar sua própria Alice, vai também a Henry James (A Outra Volta do Parafuso) e Stephen King (de O Iluminado). Referências agrupadas em torno dessa tal busca da identidade, própria da puberdade que Coraline ainda não alcançou. Seu desafio é antecipar-se a descobertas não adequadas a sua idade. “Você é esperta e quieta demais”, dizem-lhe. Mas quem a desperta mesmo são os fantasmas de crianças aprisionados no armário pela sua outra mãe há muito tempo. “Os nomes são os primeiros a partir. (...) Guardamos as nossas memórias por mais tempo que nossos nomes”, diz um deles para Coraline. Afirmação com o efeito de um café amargo para a menina.

O desfecho de Coraline explicita que Gaiman ainda tem algo a lapidar com sua pena. E o escriba dá mostras de que continuará tentando. Neste mês, por exemplo, a Conrad deve despejar nas prateleiras do país Sandman: Noites sem Fim, primeira tradução em todo o mundo da obra na qual o autor volta ao personagem que o projetou. Mais: Gaiman lançou há pouco nos Estados Unidos The Wolves in the Walls (Os Lobos nas Paredes), outro romance infantil e outra menina como protagonista. E, para o próximo ano, deve sair o filme baseado em Coraline e tocado por ninguém menos que Henry Selick, o mesmo diretor que fez com Tim Burton os longas O Estranho Mundo de Jack e James e o Pêssego Gigante.




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