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Mamãe Clory, a mamãe sabe-tudo
Ângela Corrêa
Do Diário do Grande ABC
05/12/2004 | 13:51
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Fazer uma entrevista com Clory Fagundes Marques, 87 anos, é um teste de resistência. A senhora franzina, de cabelos branquinhos e lenço no pescoço, vive no sobe-desce das escadas do casarão onde fica a sede da Associação Cristã Verdade e Luz, entidade assistencial criada por ela em São Bernardo há 35 anos. A agitação é herança da época em que administrava sozinha uma casa com quase 90 filhos, em Andradina, interior de São Paulo. Isso durante os anos 50. Hoje, Mamãe Clory, como é conhecida, contabiliza cerca de mil filhos. Isso mesmo: cerca de mil crianças passaram pelo colo dedicado desta gaúcha de Alegrete.

Apaixonada pelos pequenos, Clory viu a saga com as crianças carentes começar em 1943, quando conheceu sua primeira filha. "Ela não foi parida por mim, foi deixada em frente à minha porta oito dias depois do meu casamento", afirma. O marido, o já falecido professor Orestes Marques, não podia esperar que a família cresceria daquela forma. "Mas ele sempre foi um pai dedicado e me apoiou em todas as minhas decisões, assim como os filhos mais velhos em relação aos que chegavam", afirma.

Mulher de vanguarda na questão da inclusão de menores carentes, Clory já sabia a receita para diminuir dramas sociais em 1948, quando chegou a Andradina acompanhando o marido, que havia encontrado emprego por lá. "Minha vida foi dedicada às crianças. É porque sempre soube que as dificuldades que o mundo enfrenta hoje são relacionadas à falta de investimento na criança. É fome, falta de oportunidade e desamor por parte das famílias", resume.

Kardecista, ela gosta de pensar que o destino de cada um dos filhos adotivos já estava ligado ao seu antes do nascimento. Ela teve filhos "de sangue" como diz, mas não gosta de apontar quantos ou quais são eles. "Não importa. Eles se misturaram. São todos meus filhos, apenas isso", diz, cortando o assunto.

A família cresceu mesmo em Andradina, onde o marido de Clory trabalhava. Ela abriu um hotel que lhe forneceu uma boa renda e mais espaço para criar as crianças que o casal adotava. "Nossa vida era boa lá (em Andradina), mas comecei a ficar preocupada quando os filhos começaram a casar. Eles não tinham profissão, ofício. Sempre achei que os jovens tinham de estudar", conta. Era hora de vir para a metrópole.

"Convenci meu marido de que isso era necessário e vim procurar a casa. Vi que tinha um bairro com poucas residências e a fábrica da Mercedes-Benz. Escolhi na hora morar lá, porque desconfiei que aquelas casas pertenciam a pessoas que trabalhavam naquela empresa e que poderiam ensinar uma profissão para meus filhos também. Nem sabia que era São Bernardo até pegar a escritura na mão." Dias depois, em 8 de novembro de 1969, Mamãe Clory alugou um ônibus, colocou os 87 filhos dentro e rumou para o bairro Paulicéia. O marido, empregado em Andradina, resolveu ficar no interior e visitar a família somente nos fins de semana.

A multidão de crianças ficou abrigada em uma casa bem menor, de poucos cômodos, que logo chamou a atenção dos vizinhos. "Já estava esperando a visita de alguém da Prefeitura quando alguns vereadores vieram checar se eu era mesmo mãe das crianças. Checaram que estava tudo certo", afirma. O prefeito da época, Aldino Pinotti, cedeu uma chácara de 25 mil m² no bairro Assunção para abrigar o projeto que estava no início. A construção foi realizada por meio de doações e se tornou referência para a comunidade.

Por mais que seja cercada de empregados e voluntários que partilham de seu projeto há anos, Mamãe Clory é uma leoa no que diz respeito às crianças. "Não admito rispidez aqui", avisa. A correria é grande, mas nem por isso ela deixa de dedicar um carinho a quem ela encontra pela casa, seja criança ou adulto.

Trinta e cinco anos depois da fundação da associação que ela ainda comanda, as adoções chegaram ao fim. Um total de 234 pessoas são atendidas no local. Elas têm assistência médica, curso de alfabetização, creche, reforço escolar, bolsas para idiomas e natação. Há ainda oficinas profissionalizantes, de reciclagem e padaria. O Lar da Mamãe Clory também abriga cerca de 15 idosos. "Eles só querem carinho e merecem nosso respeito", diz Clory, uma mulher reconhecida hoje pelo amor dedicado às pessoas durante toda uma vida.




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