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Boorstin, o homem que divulgou ciência
João Marcos Coelho
Especial para o Diário
11/03/2004 | 20:25
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Há autores que ficam marcados por suas opções ideológicas. Isso não é novidade. Também não é novidade que, em geral, estas discriminações ocorrem em relação àqueles que optam pela direita. Assim, enquanto a intelligentsia de esquerda é incensada todo o tempo, a de direita é também automaticamente massacrada.

Neste tipo espinhoso de questão, o intelectual italiano Luciano Canfora, 62 anos, autor de um livrinho precioso recém-lançado pela Editora Perspectiva, Um Ofício Perigoso, mostra como, desde Sócrates, Platão e Aristóteles, ser intelectual implica riscos à saúde, inclusive física. Ele bane de seu vocabulário as expressões direita e esquerda e elege no lugar o binômio inclusão-exclusão.

A justificativa, lógica, é: todo aquele que contribuir para aumentar a quantidade dos incluídos, e conseqüentemente diminuir a enorme massa de excluídos, tem de ser devidamente valorizado. É o caso de Daniel Boorstin, que morreu aos 89 anos, em Washington DC, nos Estados Unidos, na segunda-feira da semana passada (dia 1º). Foi vítima de uma pneumonia.

Boorstin escreveu um punhado de livros que praticam um gênero para o qual os intelectuais costumam torcer seus narizes: o da divulgação histórica, científica e cultural. Ou seja, uma “história popular”, centrada nos indivíduos criadores ao longo do tempo. Cientistas sociais afeitos aos princípios da história das mentalidades e do estruturalismo certamente ficam horrorizados com este tipo de livro. Mas a verdade é que eles cumprem – como Emil Ludwig ou Stefan Zweig na primeira metade do século XX – a importante tarefa de levar o grande público a conhecer sua história, sua cultura e sua ciência. É um primeiro passo e a sofisticação e as filigranas ficam para depois.

Numa trilogia escrita entre 1983 e 1995, Boorstin faz um passeio histórico desde a Antiguidade até os nossos dias e trata de importantes enfoques. Os Descobridores (1983) concentra-se nos exploradores geográficos e científicos; Os Criadores (1992) examina a trajetória dos artistas e suas criações em todos os domínios da arte; e Os Investigadores (1995) conta vida e obra de líderes religiosos e filósofos. São livrões – têm entre 600 e mil páginas – em linguagem fácil, porém rigorosa, que nos aproximam de figuras como Buda, Platão, Bach e Picasso de modo atraente. Felizmente, as obras estão disponíveis em português, em edições da Civilização Brasileira, que também lançou uma coletânea recente, de 1998, de ensaios. Chama-se O Nariz de Cleópatra.

“O livro”, dizia Boorstin, que dirigiu por doze anos a famosa Biblioteca do Congresso, em Washington, “é a maior invenção da humanidade. Para cada um de nós, ler permanece uma atividade privada de nossa vida. Como leitores, nos refugiamos do fluxo desordenado do mundo contemporâneo. Com um livro, estamos em casa conosco mesmos”.

Celebrities – Mas Boorstin ficou mundialmente conhecido por um livro que, apesar de ter sido escrito em 1962, portanto há 42 anos, ainda não ganhou uma edição em português. Em The Image, ou A Imagem, ele foi o primeiro a desmontar a fábrica de “celebrities” em que se transformou a máquina de entretenimento norte-americana. Cunhou a palavra celebridade e a aplicou às pessoas que só querem aparecer, dar um jeito de conseguir seus 15 minutos de fama (nem que para isso seja preciso matar pai e mãe). Pessoas cretinas e imbecis como a Darlene da novela das oito (que é das nove), Celebridade, da Globo.

A personagem da novela parece ingênua, infantilizada e até simpática (além de belíssima), mas, como todos os candidatos que buscam a fama, impulsiona uma das engrenagens mais perversas e injustas da cultura de massa.

Boorstin também analisa, em A Imagem, o chamado “pseudo-evento” (a expressão é dele e também correu mundo). Pseudo-evento é todo evento concebido, planejado e executado apenas para aparecer na mídia. Nos idos de 1962, ele citou como modelo o primeiro debate presidencial norte-americano, ocorrido dois anos antes entre John Kennedy e Richard Nixon. O livro merece tradução, até porque, passadas quatro décadas, a própria vida cultural, política e econômica passou a se pautar pela criação de “pseudo-eventos” cuidadosamente planejados para ganhar espaço na mídia.

Trecho

"O deus que faz o fogo e a luz faz toda visão possível. O que santifica o adorador não é um ato de conversão, não é uma mudança espiritual, mas o simples ato de ver, a palavra hindi darsán. Um hindu não vai ao templo para adorar, mas ‘para darsán’, para ver a imagem da deidade. Cada uma das cidades consagradas a cada um dos milhares de deuses oferece o seu darsán próprio (...) Os indianos atribuem importância especial também ao lugar, o darsán, de uma pessoa virtuosa ou de um grande líder. Quando o Mahatma Gandhi cruzou a Índia de trem, milhares de pessoas se reuniram ao longo da via e nos pontos de parada para terem uma rápida visão dele pela janela do vagão. Assim eles ‘tomavam o darsán’ de Gandhi. Segundo os hindus, uma deidade ou um espírito, um lugar ou imagem santificados ‘dão darsán’ e o povo ‘toma darsán’, para o qual parece não haver correspondente em nenhuma religião ocidental.

O darsán é um fluxo de visão nos dois sentidos. Enquanto o devoto vê o deus, também o deus vê o devoto, e os dois fazem contato pelos olhos. Na construção de um templo, antes mesmo de serem feitas as imagens dos deuses esses são rogados a lançarem um olhar benévolo a todos os que forem vê-los. E quanto as imagens dos deuses são feitas, os olhos são feitos por último.

E quanto a imagem é consagrada, só então os olhos são abertos com uma agulha de ouro ou com o toque de um pincel. Às vezes grandes olhos de esmalte são inseridos nas órbitas. (...) Brahma, o Mil-olhos, normalmente tem quatro cabeças para olhar em todas as direções ao mesmo tempo, e às vezes tem olhos espalhados por todo o corpo, como malhas de onça pintada."

(Os Criadores, págs. 21 e 22)




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