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‘O Brasil vai se tornar epicentro da fome’

Júlio Renato Lancellotti, monsenhor e pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca

Por Miriam Gimenes
Do Diário do Grande ABC
20/07/2020 | 07:00
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Claudinei Plaza/DGABC


Quem passa em frente à Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, em São Paulo, nas primeiras horas da manhã, se depara com uma fila com cerca de 500 pessoas. Os integrantes dela – grande parte de morador de rua – não vão ao espaço apenas porque encontram suporte religioso, mas sim porque o local exala humanidade.É lá que encontram o padre Júlio Lancelloti, que fez 35 anos de ordenado, todos dedicados aos vulneráveis. O pároco avalia que no pós-pandemia haverá agravamento da vulnerabilidade, da fome. Para ele, só não houve ainda uma convulsão social no País “porque são muitos grupos que estão socorrendo o povo”.

São 35 anos de ordenação. Quais foram as glórias e as dificuldades neste período?
Glória nenhuma. Dificuldade é viver aquilo que a gente promete no dia da ordenação: servir ao povo e estar do lado dos pobres. Uma frase que o bispo disse no dia da ordenação me marcou: ‘Vive o que você celebra’. Acho que muitos padres esquecem disso. O que é viver o que celebra? O que a gente celebra? A partilha. ‘Isso é meu corpo. Tomai e comei.’ Ele me disse: ‘Toda vez que você celebrar a missa e disser isso significa que você entregou sua vida’. 

E o senhor, pelo que se vê, vive intensamente. O que o faz seguir a vocação religiosa?
A vocação religiosa não é uma coisa mecânica, ‘resolvi ser religioso…’ São circunstâncias da vida que te levam a tomar uma decisão, que a gente assume e é irrevogável. Agora, é como casamento: ninguém casa achando que vai separar. As questões da ordenação são muito duras. O bispo pergunta: ‘Você promete obediência a mim e aos meus sucessores?’ Então a obediência é um desafio, porque tenho muito claro que a gente não deve obedecer ordens injustas. Espero que meus superiores nunca me deem ordens injustas.

No dia a dia, quando o senhor se vê seguindo os ensinamentos de Cristo?
Isso é uma luta. O que para mim nestes dias tem sido muito forte é reconhecer nos irmãos de rua a presença de Jesus. Tem alguns que me fazem muito forte este sentimento. Sempre convivi com os moradores de rua, faço isso há mais de 35 anos. Mas esta convivência neste momento tão difícil, tão desafiador... Eles são como todo mundo é. Também tem malandragem, tudo que existe na sociedade está neles também. Não são um grupo apartado, isso é um estereótipo de morador de rua. Eles também têm ideologia dominante. Se puder passar três vezes (na fila de donativos) e pegar três vezes, vai fazer.

E como lida com isso?
Lido como tem de ser com essa situação. De maneira humana e impondo limites. Dizendo: ‘Você já pegou. Tem consciência do teu irmão? Porque vai ter um que vai faltar. Acha que está certo?’ Teve um hoje (dia da entrevista) que falou para mim: ‘Mas os outros pegaram’. E eu respondi: ‘Mas segue o exemplo dos que não pegaram’.

A gente vive a pior pandemia em 100 anos. Como vê o tratamento do governo em relação a essas pessoas vulneráveis, e também da sociedade?
O governo federal é genocida. Acho que não tem um facínora no mundo que esteja lidando com a pandemia como está fazendo o presidente brasileiro. Ele só é um pouco parecido com o monstro maior que é o (Donald) Trump (presidente dos Estados Unidos). Mas consegue superar. Você vê: estamos no terceiro ministro da Educação. Em um ano e meio de governo, três, um pior que o outro. E esse que chega agora (Milton Ribeiro) pensa que é o Ustra (coronel do Exército brasileiro, ex-chefe do DOI-Codi – Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna –, órgão de repressão da ditadura militar). Chega dizendo que é para castigar as crianças, que é para usar a vara.

Em uma das vezes em que o presidente foi questionado sobre as mortes por Covid-19 respondeu ‘e daí’. O que o senhor acha de uma pessoa que diz isso se definir cristã?
Pois é, isso é uma deturpação completa e absoluta do cristianismo. Um cristão nunca vai dizer diante do sofrimento dos outros ‘e daí’. Ele sempre vai dizer: ‘Estou aí. Estou junto. Vou tomar providências para melhorar e evitar’. Por exemplo, a questão do veto do uso de máscaras nos presídios, o veto no geral. Ainda bem que tem as leis estaduais e municipais e ele (presidente) não pode sobrepor. A questão dos indígenas, ele ter vetado tudo que foi aprovado para protegê-los. Ainda que o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal – Luís Roberto Barroso) teve um lampejo de lucidez e obrigou o governo a fazer barreiras sanitárias (nas tribos). Nós estamos vivendo durante a pandemia o genocídio da juventude negra aguda. Matando crianças, jovens. Quando iniciou a pandemia e tudo fechou tivemos momentos aqui tenebrosos de solidão. Não tinha nada, ninguém na rua. Todo dia demos máscaras, álcool em gel, fizemos um lavatório, para os recicladores lavarem as mãos. Vem o ‘consultório de rua’, mede a temperatura de todos eles. Alguns (moradores de rua) sumiram (se emociona). Tem vários que não vejo mais. A Suelen morreu (chora). Era uma moradora de rua e o companheiro dela sumiu. O nosso objetivo não é ser uma lancheteria ou um bazar de rua. O nosso objetivo é quebrar a incomunicabilidade. A prefeitura tardou em abrir os abrigos emergenciais. Nós queríamos a rede hoteleira. A prefeitura foi autorizada tardiamente pela Câmara, que tardiamente autorizou o uso da rede hoteleira. (...) Antes do segundo edital, o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis de São Paulo (Ricardo Roman) se manifestou contra (a abrigar pessoas em situação e rua). É muito sintomático a manifestação dele contra e no segundo edital ninguém se apresenta. (...) São Paulo é a única metrópole do mundo que não ofereceu uma vaga aos moradores de rua. É uma rede hoteleira racista, classista, discriminatória. Os que estão no hotel da Mooca nós pusemos e estamos pagando. O atendimento oficial é institucionalizado, desumanizado, burocratizado, não chega perto deles.

Tivemos há pouco uma declaração de Bia Doria, primeira-dama do Estado, falando sobre morador de rua, que a maioria deles está na rua porque quer. Como o senhor vê este tipo de declaração, já que convive tão perto deles?
Quando recebi aquele vídeo levei um susto até reconhecer quem era. Quando reconheci, a minha primeira postagem foi ‘não sei o contexto, não sei a data, mas as declarações são horripilantes’. Aí depois fui entender que quem pôs o vídeo foi a outra moça (a socialite Val Marchiori), que postou no Facebook. Não é nenhum hacker, não foi o Intercept, ninguém que pegou aquele vídeo. Foi postado por ela. E começou a repercutir, até internacionalmente. O governador diz que foi editado, mas ninguém mandou para uma perícia. Quem olha aquilo não me parece edição, porque não há nenhum corte. Agora, o que me entristece naquilo é que não é uma opinião só dela, é a de muita gente. Ela só verbalizou. Foi muito cobrada, mas a fala não é só dela. Por isso, tenho postado as imagens dos albergues, como esse CTA (Centro Temporário de Acolhimento) inaugurado pelo João Doria. Hoje (dia da entrevista) perguntei de manhã como está lá e me disseram que do mesmo jeito, cheio de percevejos. Você dormiria em uma cama com percevejos? Eles podiam estar em hotéis, em locação social, podiam estar em repúblicas, em pensões, em hostels, que estão vazios na cidade. E acho que por um bom tempo vai ficar, porque quem vai vir aqui fazer turismo? O Brasil vai se tornar o epicentro da fome. Todas as previsões são de agravamento da situação social. Nós ainda não tivemos uma explosão, uma convulsão social, porque são muitos grupos que estão socorrendo o povo. A gente socorre porque a fome tem pressa. Aqui era comum o pessoal passar de carro (no começo da pandemia) e gritar ‘vagabundo’, ‘padre comunista’. Agora os carros passam e alguns buzinam, saudando. Porque eles apostaram que a gente não ia ficar, a gente ia sumir daqui. Nos dias mais tenebrosos, teve gente que chegou naquela grade para dar embrulhado em um papelzinho R$ 5. Quanto mais se fechou (o isolamento), a solidariedade aumentou. Agora, quanto mais abre, a solidariedade fecha.

Por que ocorre isso?
O pessoal ficou parado, em casa, ficou muito evidente a desigualdade. Agora vai abrindo, as pessoas vão para o shopping. Tenho falado todo domingo na missa: o que será que tem de tão importante que a pessoa precisa passear para ver todo mundo outra vez. O pessoal volta a trabalhar, para suas ocupações, alguns voltam para lutar pela sobrevivência, tem muita gente com dificuldade, então a solidariedade foi diminuindo. Ela não pode ser pandêmica, tem de ser endêmica. E tem de entrar nas estruturas sociais, econômicas, políticas.

Então o senhor não acha que a humanidade pode sair diferente dessa?
Penso como Frei Betto (frade, jornalista e escritor) já falou: quem entrou disponível vai sair mais disponível e solidário. Quem entrou egoísta e recalcitrante, vai sair mais egoísta e recalcitrante. O que a pandemia fez? Potencializou aquilo que você é. Por que tivemos no início as pessoas que foram para o supermercado pegar tudo só para si e não se importavam que o outro ficava sem? Houve a corrida do consumo. Como agora está tendo a corrida do shopping. A mudança não é automática. Os padres que não gostam dos pobres não vão sair depois da pandemia gostando dos pobres. Vão continuar do mesmo jeito.

Qual o papel da fé neste momento que a gente vive?
A fé não é um privilégio. A fé não é uma redoma. A fé é um chinelo que você usa para caminhar. É compromisso. Não é pedir vantagens para mim, é estar a serviço de alguém. Aí falaram: ‘Você não acha melhor ficar remoto, longe?’ Eu não conseguiria ficar em casa olhando pela câmera, pelo telefone, o que está acontecendo. E aconteceram coisas incríveis. Eles (moradores de rua) usando a máscara, o que eu vejo mais rápido são seus olhos. Tenho uma técnica para pegar o olhar deles, quando não me olham. Não solto o que eles estão pegando na minha mão e eles imediatamente olham. E a resposta sempre é um sorriso. 

Se o senhor se encontrasse com Deus hoje o que gostaria de ouvir dele?
Você me viu hoje, eu estava lá na fila.

RAIO X

Nome: Júlio Renato Lancellotti
Idade: 71 anos
Local de nascimento: São Paulo
Formação: Pedagogo e presbítero
Hobby: Cuidar de seus livros e imagens de santos
Livro que está lendo: Jesus – Volver a los Comienzos (Francisco Javier Sáez de Maturan) 




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