Política Titulo 60 anos em 60 entrevistas
'Grande ABC é rico em protagonistas'
Por Marília Montich
Do Diário do Grande ABC
08/04/2018 | 07:00
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Claudinei Plaza/DGABC


Prestes a completar meio século de reportagem, em setembro, Ademir Medici, 67 anos, coleciona boas histórias, leitores fiéis e um imenso amor pelo jornalismo. Nasceu em São Bernardo, onde também deu os primeiros passos na profissão. É casado há 43 anos com Ivete, com quem tem dois filhos. Ganhou o Prêmio Esso, na categoria regional, em 1976, tem 36 livros publicados e assina desde 1987 a coluna Memória, neste Diário. Pesquisar sobre o Grande ABC e seus personagens é sua grande paixão. Para ele, a região é terra fértil, onde não faltam boas histórias a serem contadas.

Como o jornalismo entrou na sua vida?
Escolar, fazia um jornalzinho manuscrito. Jovem, 18 anos, lancei O Tambor, jornal mimeografado mantido durante três anos na indústria química Resana, que deixou o bairro Demarchi – por causa das enchentes – e que há anos está em Mogi das Cruzes. No lugar da fábrica foi construído um piscinão.

Quando o senhor começou a se interessar pelo resgate da memória do Grande ABC?
O Tambor falava do EC Resana e da indústria. E já tinha seções voltadas à memória. Entrevistava os jogadores, dirigentes, funcionários, já me preocupando em entender como cada um chegou à cidade e à firma. Lembro de uma edição em que desenhei o mapa do Brasil na capa, colocando em cada Estado o número de funcionários ali nascidos e que agora eram nossos colegas na Resana. Mais ou menos como fazemos hoje, no obituário da página Memória (caderno Setecidades), onde são citadas as cidades natais e países dos falecidos. Sem o saber, fazia uma pesquisa sobre formação étnica.

A coluna ‘Memória’ – inicialmente chamada de ‘Grande ABC Memória’ – existe há 30 anos. Como surgiu a ideia do projeto?
A ideia nasceu em uma reunião de pauta, 1976. Decidiu-se que falaríamos da formação histórica de cada um dos bairros das sete cidades. As reportagens seriam em rodízio, com vários repórteres em ação. Fiz a primeira reportagem, focalizando a Vila Assunção, em Santo André. Fiz a segunda, dos bairros Batistini e Demarchi. A terceira, da Vila Barcelona. A quarta, de Piraporinha. A quinta, do Jardim Zaíra. Acabei fazendo as quase 100 reportagens. A cada edição, moradores enviavam novas informações e fotos do bairro focalizado. Guardei o material. Em 1985 o Diário lançou o projeto ‘Domingos’. Domingo em São Bernardo, Domingo em Mauá, Domingo em Ribeirão Pires. Cada jornal ganhou a sua seção Memória. Comecei a desovar o material guardado. Certo dia, em 1987, um texto-legenda inaugurou a coluna Memória do próprio Diário. De repente, a coluna, transformada em página, chegou aos 30 anos. Em setembro fará 31. Assim, num piscar de olhos...

Após essas três décadas, como avalia o papel da coluna no cenário regional?
Amo o que fazemos, assim mesmo, no plural, pois tenho uma equipe maravilhosa, formada por vocês, colegas de Redação, e pelo leitor, que interage, acredita no trabalho, envia material, ajuda no entendimento da formação histórica do Grande ABC. Quando erramos, eu e os colaboradores corrigimos. Damos crédito a todos. Regras simples do jornalismo. E nesta simplicidade acho que ganhamos a confiança do leitor.

A série ‘Grande ABC: A Metamorfose da Industrialização’, em parceria com o jornalista Édison Motta (1953-2015), lhe rendeu o Prêmio Esso de melhor reportagem regional em 1976. Nela foi abordada a falta de planejamento dos governos no processo, o que resultou em diversos problemas sociais e ambientais. Para o senhor, qual foi o significado da premiação?
Um marco na nossa carreira, pela importância que o ‘Esso’ representava. Um alívio, também, porque o tema suscitou mal-entendidos. Chegamos a ser taxados de derrotistas, quando o que fizemos foi denunciar o lado negativo de uma industrialização feita sem maiores cuidados com a preservação do meio ambiente, por exemplo.

O fato de se tratar de temática até então inexplorada explica, na sua opinião, o recebimento do prêmio?
Sem dúvida. Dizia-se que o Grande ABC era o eldorado brasileiro, o que gerava a vinda de legiões de brasileiros verdadeiramente expulsos de seus locais de origem em busca de dias melhores. O êxodo era tanto que a Prefeitura de São Bernardo, depois da série, fez uma pesquisa e detectou a chegada de 11 ou 14 famílias por dia à cidade. Famílias humildes, despreparadas, que, sem alternativa, passaram a ocupar o cinturão verde, transformando-o em favelas.

O senhor acredita que a série de reportagens fez a região ganhar notoriedade em nível nacional?
Ajudou. Contribuiu modestamente. Mas o Diário como um todo é que colocou o Grande ABC no mapa nacional. Desde os tempos do News Seller o Diário sempre foi referência e sempre pautou a chamada grande imprensa. As coberturas econômica e sindical do Diário sempre foram vanguarda. A leitura dos editoriais, normalmente redigidos pelo saudoso Fausto Polesi e interpretados na Rádio Diário pelo também saudoso Rolando Marques, é significativo e sintetiza a transformação regional. Se um retrocesso existe é que esta mesma mídia, pautada pelo Diário, outrora dava crédito ao jornal, hoje passa por cima. Novo jornalismo? Penso tratar-se de falta de ética. Quando a Globo lançou o Bom Dia, São Paulo, o Diário tinha a sua manchete divulgada todos os dias na telinha. Idem a Rádio Bandeirantes, que, ao criar seus jornais impressos próprios, ‘esqueceu-se’ do velho parceiro. Já o Diário não se esqueceu deles.

Depois da série de reportagens que lhe rendeu o Esso, que mudanças o senhor enxergou no cenário regional?
Jornalisticamente, uma nova palavra entrou em pauta – e não só do Diário: metamorfose. Com um subtítulo: desindustrialização. O parque fabril pulsava. A procura de empregados especializados, em especial na parte técnica, fervia. Era comum empregado trocar de emprego sistematicamente por salário melhor e melhores condições de trabalho. Mas algo não ia bem. A série é de 1976. Em 1978 eclodiram as greves da Scania, Ford e Fontoura. A classe operária se organizava. A classe empresarial também. A velha disputa capital-trabalho ganhava novos contornos. Ficava claro para nós, jornalistas, que o processo de formação industrial do Grande ABC deixou lacunas e que as novas gerações iriam sofrer as consequências. Para sobreviver teriam que fazer algo. Esta procura persiste, 40 anos depois. É o Grande ABC buscando sua nova identidade.

Como a temática ainda reverbera no Grande ABC? De lá para cá, que mudanças o senhor avalia terem sido mais significativas?
A criação da Lei de Proteção aos Mananciais no mesmo ano do ‘Esso’, com todas as suas falhas, demonstrou que estávamos certos. Uma discussão em torno da identidade do Grande ABC foi estabelecida. Abriram-se olhos para o potencial turístico regional. A riqueza de uma Represa Billings, de uma faixa da Mata Atlântica que por aqui passa, da vila ferroviária de Paranapiacaba, dos monumentos ao longo da Serra do Mar. Ficava claro que o Grande ABC não era só indústria. Teria que ser repensado. Ainda precisa ser mais profundamente repensado, e não apenas com organismos oficiais como o Consórcio Intermunicipal. A comunidade precisa participar mais.

O senhor já publicou 36 livros sobre a história do Grande ABC. Como se deu o trabalho de pesquisa que resultou nas obras?
Diria que a pesquisa segue a mesma diretriz de uma reunião de pauta. O que faremos? Qual a meta? O que se busca? Para cada livro uma, duas, dez, várias reuniões. Como fontes, os personagens da história a ser escrita. Na verdade, seus verdadeiros autores. O repórter, no caso, é um mero instrumento e organizador do que se pretende escrever.

Ainda há mais histórias da região para serem contadas?
São infinitas. A cada dia, uma surpresa. O Grande ABC é rico em histórias, porque é rico em protagonistas. Gente que tem raízes quinhentistas na região ou que veio de todos os pontos do mundo. Do mineiro ao austríaco, do morador do Interior do Estado à família de japoneses que embarcou em busca de novos horizontes. Cada pessoa tem algo a contar. Basta ter ouvidos para ouvir. E se surpreender. Sempre. Veja a série agora iniciada na página Memória com a fauna do Riacho Grande descoberta, pesquisada e fotografada pelo biólogo Nei Mello.

Como é acompanhar de perto a evolução das mídias no jornalismo?
Normal. As pessoas não entendem por que não uso celular. Mas quando foi necessário usar a internet, aprendemos a usá-la. Lembro que o fax foi uma revolução. E tão rapidamente como veio, foi superado. Tudo o que veio é, tecnicamente, muito bom. Mas nada pode substituir uma boa conversa em torno de uma mesa com um novo informante, tomando café, comendo uma fatia de bolo, achando graça quando o filho indaga o pai por que ele não lhe disse tudo o que falara ao repórter. ‘Você nunca me perguntou?’

Como tem sido a experiência de apresentar um programa no DGABC TV? Já tinha se imaginado na frente das câmeras?
Está vendo? Não fugi ao desafio. Geralmente esqueço que estou diante de uma câmera. Converso com o entrevistado como venho fazendo desde os tempos de O Tambor, curioso em descobrir o lead (primeiro parágrafo da notícia).

De que forma a atração na internet complementa o trabalho desenvolvido pelo senhor no impresso? As plataformas conseguem dialogar?
Tem facilitado, e muito. Ampliou-se o diálogo. De qualquer modo, sempre digo ao mais novo: não se deixe envolver e iludir pelo simples apertar do botão. Digo sempre que nada substitui o olhar nos olhos. O Google ajuda, mas é superficial, burocrático, não traz o novo que apenas uma boa entrevista pode trazer.

Olhando para trás, se imaginava fazendo parte do Diário após tantas décadas?
Não. A sorte é que são vários Diários, nas suas várias fases, nos seus vários momentos, com suas várias equipes. Não existe acomodação. Pensava em me aposentar e ter mais tempo para frequentar as bibliotecas públicas. Servir melhor ao estudante que me procura para um trabalho qualquer. A coisa foi rolando e essa assessoria, espontânea, ocorre naturalmente. Auxilia no trabalho.

Como o senhor avalia a evolução do Diário ao longo desses 60 anos?
Como disse: são vários Diários. Em todas as alternativas, saídas foram buscadas. Quantos jornais fecharam as portas neste período de transformação do Grande ABC? Bons veículos. O Diário resiste com fibra e talento. Revela excelentes profissionais, e não só na Redação. Esta renovação garante a evolução do jornal que a gente ama, sorrindo com suas vitórias, chorando quando algo não vai bem.

Que futuro espera para o Grande ABC?
O futuro está no turismo e no meio ambiente. A Billings é fabulosa. A área de mananciais, extraordinária. Temos flora e fauna a meio caminho entre o Litoral, a Capital e a boca do Interior. Temos história e memória. Quando reativarmos o sistema funicular ferroviário entre Paranapiacaba e Piassaguera, teremos algo único no mundo. Bergamo, na Lombardia, sobrevive com um funicular dez, 15 vezes menor. E sem a paisagem atlântica que temos. Quando investirmos na navegação pluvial, retornaremos aos tempos áureos de Eldorado e Riacho Grande. Quando sistematizarmos a tecnologia aqui desenvolvida desde tempos imemoriais, aprenderemos que o Grande ABC já fez de tudo e superou desafios. O futuro passa, sem dúvida, pelas trilhas da nossa história.

Ademir Medici e o Diário
Ademir Medici foi admitido no Diário em 1972. Atuou como repórter, editor de Geral (que hoje corresponde ao caderno Setecidades), repórter especial, editor de reportagens especiais e secretário de Redação. Atualmente assina a coluna Memória, é responsável pelo obituário nas versões impressa e online e apresenta programa no DGABC TV. Sua relação com o veículo, contudo, é ainda mais antiga. “Eu trabalhava em departamento pessoal e a firma assinava o Diário, logo, sempre li o jornal. Um velhinho ia sempre à empresa em busca de anúncios. Era contato de publicidade do Diário”, lembra.




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