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Bengala: todo mundo tem as suas!

Com 14 anos, penso que entre tantos desejos pré-adolescentes o que sempre fica em comum é a sede de liberdade

Carlos Ferrari
03/11/2010 | 00:00
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Com 14 anos, penso que entre tantos desejos pré-adolescentes o que sempre fica em comum é a sede de liberdade. Isso então se manifesta nas vestimentas ousadas, prontas para afrontar qualquer tipo de questionamento; na bicicleta motorizada que pode ir mais longe e mais rápido; nas atividades artísticas, como música e dança, onde sentimentos e emoções viram obras vivas à espera de aplausos e seguidores.

Foi nessa idade que decidi entrar em uma banda de heavy metal, deixar o cabelo crescer e como dizem, atualmente, dar uma repaginada no visual. Nessa idade, eu quis começar a trabalhar, afinal de contas junto com o ímpeto de comprar novos instrumentos, discos das bandas preferidas, enfim conquistar a ‘independência financeira juvenil', tinha comigo a clareza de que aquele era o momento, pois sempre aprendi com meu pai, através de suas histórias de vida, que o homem precisa começar a trabalhar cedo, até porque com ele tinha sido assim - aliás, bem antes dos tais 14 anos.

Se essa ideia é certa ou errada, já é tema para outras reflexões. O fato é que para mim, cego total, trabalhar com aquela idade, precisava ter autonomia para ir de casa para o trabalho e vice-versa. Tinha que me preparar para o uso da bengala longa, tecnologia básica, porém fundamental para o deslocamento de qualquer pessoa com deficiência visual, pois mais do que uma ferramenta de orientação, também serve como meio para identificação daquele indivíduo que muitas vezes precisa ser percebido como tal, para que as pessoas possam oferecer ajuda, por exemplo, para a travessia de uma rua.

Pegar, aceitar, enfim conviver com a bengala não foi nada fácil. Já tinha uma faz tempo em casa; havia ganhado de um amigo, e saber que ela estava lá significava grande expectativa de liberdade e de um futuro repleto de passeios e possibilidades. Todavia, no momento do uso veio junto um constrangimento bobo, inexplicável, pois ficava pensando o que vão dizer quando me virem usando isso. Os colegas de escola, os vizinhos; os amigos de banda e de balada! Todos esses poderiam achar estranho, sentir pena, ou até quem sabe fazer comentários sobre o assunto sem que eu viesse a saber. Mas enfim, era a bengala e junto o primeiro trabalho, os primeiros passeios totalmente independentes, ou deixar para lá e ficar tudo como estava.

Passaram-se alguns dias e defini por buscar na gaveta a velha bengala, e fazer a matrícula no curso de orientação e mobilidade, o que algum tempo depois ficou sendo para mim algo como tirar a carteira de motorista.

Já pensaram quantos de nós passa a vida com medo de aceitar as tantas bengalas que podem verdadeiramente significar a conquista da liberdade? O medo do que vão dizer, do que podem pensar, muitas vezes acaba inibindo o grande profissional a tomar coragem, pedir demissão e mudar de emprego. Em outros casos o casal já desgastado pelas brigas, porém acomodado pelos domingos em família e receoso de perder os amigos e eventos comuns, deixa para amanhã a possibilidade de recomeçar uma nova história.

Fica aqui um convite para que possamos fazer um balanço de quantas bengalas temos deixado para trás, escondidas em gavetas e armários de nossa história, por medo do que possam dizer, ou pela comodidade de não se enfrentar o novo. Feito isso, vamos então começar a construir um processo de transição, uma mudança que nos prepare e encoraje para pegar aquelas bengalas que, como a minha há 20 anos significou o maior símbolo de autonomia e transformação de vida de minha história até aqui.




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