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‘A Feiticeira’ agora em celulóide
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
30/09/2005 | 08:43
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A Feiticeira chegaria aos cinemas, cedo ou tarde. Tamanha previsibilidade resulta do novo mandamento de mercado que determina: todo seriado que outrora cativou multidões diante da TV, tenha sido ele bom ou de qualidade duvidosa, merece o reino dos céus no cosmo do entretenimento, ou seja, uma versão em celulóide. O que não podia se esperar era que a diretora e roteirista Nora Ephron espertamente borrifaria umas gotículas de metalinguagem e, assim, questionaria em certa medida essa estratégia maníaca de Hollywood em usar como sachê de seus enredos a memória televisiva.

Trintões, quarentões e cinqüentões recordam da bruxa Samantha, interpretada na série dos anos 60 por Elizabeth Montgomery, empenhada em largar a vida de feitiços em favor do casamento com James (Dick York e Dick Sargent), um reles mortal.

Nora – cardeal da comédia romântica, gênero no qual se fixou com as parcerias com Meg Ryan, como Mensagem pra Você e Sintonia de Amor – não substitui Samantha por Samantha. Prescinde da absorção da personagem, via remasterização narrativa. Samantha permanece ali intacta.

A nova feiticeira é Isabel Bigelow (Nicole Kidman), também ela uma bruxa de fato que pretende abandonar as facilidades da mágica para conviver com os mortais. Deixa para trás uma dimensão em que tudo se resolve com um passe de mágica, apesar dos protestos do pai, Nigel (Michael Caine). Quando guria, Isabel era proibida de assistir aos episódios de A Feiticeira na TV, considerado pela comunidade de magos um desrespeito a seu modo de viver.

Simultaneamente, Jack Wyatt (Will Ferrell, de Melinda e Melinda) é um ator com certa fama devida à série de fiascos que protagonizou no cinema, um expatriado da película, uma espécie de Kevin Costner em busca do sucesso perdido. A redenção parece estar na TV, que o convida para encabeçar o elenco de um remake do seriado A Feiticeira. Falta encontrar uma intérprete de Samantha capaz de mover o nariz – veículo das feitiçarias da personagem – com graça e naturalidade similares às da original. Bingo: Isabel, que procura emprego para enquadrar-se no mortal way of life e nunca interpretou um arbusto sequer, é selecionada para o papel, em virtude, única e exclusivamente, de sua habilidade nas coreografias nasais. Para completar o elenco de A Feiticeira do século XXI, convocam a atriz Iris Smithson (Shirley MacLaine), no papel de Endora, megera indomável e mãe da protagonista da série.

É o filme dentro do filme. Correção: a série dentro do filme. Esse exercício de metalinguagem dilui-se em pequenos lances, como a bonequinha de Samantha empregada como conselheira de Isabel, que esconde sua condição de feiticeira de Jack, quando ambos começam a sentir a mútua atração que media toda comédia romântica. Esse aspecto esquenta um tanto mais quando Nora posiciona os momentos de felicidade do casal de personagens nos estúdios da emissora de TV. O espaço cenográfico, a fábrica de ilusões por trás da TV torna-se o refúgio da harmonia de ambos, que chegam a considerar como "nossa casa" a residência cenográfica. Boa cartada.

No entanto, A Feiticeira acumularia muito mais interesse se não omitisse essa informação sob o pancake da comédia romântica. É o mal da diretora Nora: parte de elementos circunstanciais que dão um baita caldo para, enfim, direcioná-los sempre para o mesmo destino, que é essa coisa da alma gêmea, essa trova romântica incontestável. Antes era Nova York e suas distâncias, desperdiçadas em Sintonia de Amor; depois foi o ambiente on-line como negociador de relacionamentos, novamente descartado em Mensagem pra Você; agora é o patrimônio pop, representado por uma série de TV, que escorre pelo ralo.

Nora é assim, tem na monotonia de propósitos sua apólice de cinema. Provas maiores desse (in)seguro narrativo são a direção de atores e os enquadramentos inexpressivos, que sacrificam a química entre Nicole e Ferrell, vindos de escolas dramáticas distintas: ela, do drama e da escultura autoral com diretores como Lars Von Trier (Dogville) e Stanley Kubrick (De Olhos Bem Fechados); ele, da comédia besteirol, em que sua identidade cômica nunca é incinerada mediante a personalidade da direção (Um Duende em Nova York e O Âncora). Separados, funcionam que é uma beleza; juntos, parecem situados em galáxias distantes. O feitiço do piloto automático – com o qual Nora contava à época dos duetos entre Meg Ryan e Tom Hanks – virou contra a feiticeira.

A FEITICEIRA (Bewitched, EUA, 2005). Dir.: Nora Ephron. Com Nicole Kidman, Will Ferrell, Michael Caine, Shirley MacLaine. Estréia nesta sexta-feira no ABC Plaza 1, Shopping ABC 3, Extra Anchieta 4, Metrópole 3, Central Plaza 10 e circuito. Duração: 102 minutos. Censura livre.




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