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Fé e gols de um padre haitiano

Dickson entrou para Igreja após torneio de futebol; hoje, na Matriz de Sto.André, acolhe imigrantes

Raphael Rocha
Do Diário do Grande ABC
26/12/2017 | 07:05
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Celso Luiz/DGABC


Dois gols na final de um campeonato interreligioso em Porto Príncipe, capital do Haiti, em 2000, e o título daquele torneio mudaram a vida de Jean Dickson Saint-Claire. Caminho esse que, depois de quase duas décadas, teve Santo André como destino. Haitiano, padre Dickson, como é conhecido, celebra missas na Igreja Matriz, na Vila Assunção, desde 2015 e também é responsável por um projeto que acolhe imigrantes haitianos no Brasil.

Atacante, Dickson foi chamado por um grupo de seminaristas da congregação dos scalabrinianos, fundada pelo bispo italiano dom João Batista Scalabrini em 1887, em Porto Príncipe. “Eu não era seminarista, mas fui convidado a jogar, porque às vezes ia jogar bola com eles, já que a congregação ficava a 15 minutos a pé da minha casa. Era a final do campeonato interreligioso e ganhamos, com dois gols meus. A minha história na Igreja começou por aí, sabe? Comecei pela amizade”, discorre o pároco, que, anos antes, foi convidado pelo padre Marat, de sua paróquia no Haiti, a ingressar no seminário. “Sabe o que eu respondi? ‘Está louco?!’”

O avanço dos estudos religiosos de padre Dickson coincidiram com a missão da ONU (Organização das Nações Unidas) no Haiti, liderada pelo Exército brasileiro, em 2004. O país caribenho vivia em meio a incertezas, com violência entre gangues e instabilidade política, que culminou na renúncia do então presidente Jean-Bertrand Aristide. Dickson iniciara o noviciado, um período da formação de um pároco, e tinha como mestre um padre brasileiro de bom relacionamento com soldados do Brasil.

“Eu me dei muito bem com os brasileiros. Eles falavam português e eu tentava o espanhol. A gente se entendia. Até que, em 2005, fui cursar Teologia. Não temos esse curso no Haiti. Temos no Brasil, Filipinas, Roma, Colômbia. E cada um recebe sua destinação. Calhou de eu vir para o Brasil em 2006 para fazer meu curso”, lembra padre Dickson, que ficou em São Paulo e Brasília nos cinco anos de estudos antes de ir para Roma, para cursar mestrado em História da Igreja. Foram mais três anos como aluno.

Em 2014, mesmo ano em que se ordenou padre, Dickson novamente teve o Brasil como destino porque ficou em Manaus, no Amazonas, auxiliando a recepção de imigrantes haitianos ao País. Foi esse o período de maior fluxo imigratório, uma vez que os naturais da nação caribenha viam no Brasil a possibilidade de melhora de vida.

“O Haiti é meio parecido com o Brasil, sabe? É muito empobrecido e essa pobreza tem várias faces. A gente vê que há dificuldade. Mas tem muita gente rica, que vive bem. Não há partilha. Há desigualdade mesmo”, relata padre Dickson.

Segundo dados da PF (Polícia Federal), entre 2011 e 2015 a quantidade de haitianos que chegaram ao Brasil aumentou 30 vezes, passando de 481 registrados em 2011 para 14.535 quatro anos depois. Isso contabilizando apenas os documentados pela PF.

A história de padre Dickson com o Grande ABC se cruza definitivamente em 2014, quando veio morar em Ribeirão Pires. Dickson se tornara professor no Itesp (Instituto Teológico São Paulo), no bairro do Ipiranga, na Capital, e aproveitara a facilidade do trem da Linha 10-Turquesa (Rio Grande da Serra-Brás), que liga Ribeirão ao Ipiranga. Foi designado para celebrar missas na Paróquia São José, em Ribeirão.

“Foi então que começamos os trabalhos com os haitianos que vinham para cá”, conta Dickson, lembrando da ajuda que teve da ex-vereadora Maria Ferreira de Souza, a Loló (PT), de Santo André, então diretora de Humanidades da Prefeitura de Santo André. “Começamos um trabalho de acolhida, dando aula de português em Utinga (em Santo André). O padre Herculano abriu as portas da igreja. Tínhamos parceria com o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), do governo federal, tínhamos aulas de língua portuguesa. Foi quando, em 2015, o nosso bispo dom Pedro Carlos Cipollini pediu para eu vir para a Matriz de Santo André, mais no Centro, para ajudar.”

O trabalho de acolhida de haitianos foi transferido, definitivamente, para uma casa dentro das dependências da Emeief João de Barros, em Utinga. “A casa estava abandonada. Ali entravam, fumavam, se escondiam. A casa estava caindo. Deu trabalho, mas hoje está um espaço muito bom. Virou a porta de entrada. O espaço caiu do céu.”

Embora avalie que o fluxo imigratório tenha perdido força – até pela crise econômica no Brasil, que culminou na elevação da taxa de desemprego –, padre Dickson aponta que ainda há haitianos vindo ao País em busca de dias melhores. “No Grande ABC ainda há cerca de 1.000”, estima. Mas o pároco, hoje com 40 anos (embora aparente menos idade), acredita que, em breve, terá de voltar à sua nação natal, apesar de ressaltar o “perfeito acolhimento do povo de Santo André”. “Eu gostaria de fazer alguma coisa pelo meu país. Como sou missionário, estou fora, não sei. Se der para voltar e fazer alguma coisa, voltaria. Tem muita coisa para fazer com as crianças. Penso em um projeto de ajudar as crianças em sua recuperação. Orientar melhor o futuro dessas crianças por meio da música, da arte. Penso muito nisso”, comenta. “Eu fui criança, todos fomos crianças. A gente sabe que quando a criança não tem ajuda fica muito mais fácil tornar-se um adulto irresponsável.”

Quase 20 anos depois dos dois gols que fizeram com que ele traçasse o rumo religioso, padre Dickson garante que ainda joga seu futebol. “E jogo bem. Faço gols, dou umas canetinhas (risos). Agora não tanto pelo meu trabalho com os imigrantes. Mas sempre que posso, eu jogo”, assegura ele, torcedor declarado do Barcelona e da seleção da Argentina. “Mais da metade do Haiti torce para o Brasil. Eu gosto de ver a Argentina jogar.”

Depois de 13 anos, em setembro, o Brasil encerrou sua missão no país caribenho. Padre Dickson crê, entretanto, em longa jornada pela frente junto aos mais necessitados. “A fé sem obra é morta. Vendo nosso irmão sofrendo e ficar indiferente...” 




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