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Crônica - Bruxa solta
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
10/08/2006 | 08:44
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A uma hora dessas, já deveria estar em casa, preocupado com o destino dos órfãos da novela. Mas não! Agora era ele a vítima da orfandade. Órfão momentâneo, do ônibus que tomava-o, ninava-o – é verdade que de forma um bocado bruta, com solavancos e tal – até colocá-lo para dormir a 500 metros de casa. Hoje atrasou. Duas horas! Até agora, nada. Já tinha se viciado, igual ao punhado de gente no ponto de ônibus, em pulso esquerdo, tal a freqüência com que apelava para ele. Minuto a minuto. Duas horas de atraso! Só poderia ser culpa da bruxa.

A bruxa é poderosa. Ardilosa. Deixou meia dúzia de chapéus espalhados pelo asfalto e desviou o curso do tráfego. Sozinha! Mandava e desmandava na cabeça de dezenas, centenas, milhares de motoristas. Dizem que ela agora está a serviço da comunidade. Os seus chapéus, que afunilavam a correnteza de veículos, traziam patrocínio, estampavam siglas que tomavam emprestadas as iniciais de tráfego ou trânsito para situá-las entre suas maiúsculas. Cones laranja-branco-laranja-branco-laranja. Cones que encantavam os carros com um sucesso igual ao do flautista de Hamelin diante dos roedores.

Não conseguia largar o vício recém-adquirido. Olhou o pulso de novo. Dois minutos mais. Barbaridade! A bruxa deve ter mandado o ônibus para alguma dimensão desconhecida. Não é possível!

Tap, tap, tap! Começou a estapear os bolsos, à guisa de verificar se não tinha deixado nada na firma. Poderosa como era, a bruxa bem que poderia lhe pregar uma peça. Carteira... Ok. Chaves... Ok. Crachá... Ok. Celular... Celular... Celular? Ai! Esqueceu o celular. Bem que estranhou o silêncio telefônico. Nenhuma ligação até então. Incomum. Não que fosse tão requisitado quanto alguns moradores do Condomínio do Sol Quadrado, mas àquela hora a mãe já teria ligado, como fazia toda noite, com o questionário ritual: “Tudo bem?”; “Já jantou?”; “Está frio aí?”; “Como foi o trabalho hoje?”...

Por falar em ritual, começou a meditar sobre a convocação extraordinária da bruxa. Foi chamada pela terceira vez, para ajudar com o mesmo problema das duas ocasiões anteriores. Deveria apagar o incêndio causado por um pessoal que exercitava a língua do pê. Não o dialeto infantil, que ele praticava com os irmãos e desorientava mãe e pai. Por exemplo, para criptografar ônibus, diziam: “pê-ô-pê-ni-pê-bus”.

O dialeto do pê que aquele pessoal usava era outro, monocórdico, de uma palavra só: pececê, pececê, pececê... Coincidia ser o pê fruta da época naquele ano, eleitoral. Havia quem dizia que os dois dialetos, o do pomar criminal e do pomar eleitoral, vinham da mesma região. Salvo engano, o lingüista que tinha insinuado a raiz coincidente dos dois idiomas pertencia ao mesmo quadro de especialistas que afirmava ter a proliferação do pececismo “sob controle”. Então seria justo imaginar que o atraso de duas horas estava sujeito ao tal “controle”.

“Hoje poderia ser domingo”, ele pensou. Gostava de trabalhar, não desejava ter um domingo diário para gozar de uma folga diária. É que no domingo, pelo menos no último, quando foi ao cinema com a vizinha que ele tentava promover a namorada, saiu e chegou em casa no horário que tinha pré-determinado. Era até então imune ao vício nos ponteiros.

Viciou-se. Consultou o pulso outra vez. Quatro minutos mais. “Sob controle?”, perguntou a si mesmo, desejando que o questionado fosse o idealizador da sentença. Lembrou do cinema. Tinha assistido a Estamira. Quando sua acompanhante lhe informara o título do filme, tinha achado que era filme espanhol ou de alguma outra língua latina que comportasse aquela palavra que seu vocabulário estranhava.

A companheira sorriu. Só informou que o filme era brasileiro, documentário e que seu título era, na verdade, o nome da mulher nele retratada, uma catadora de lixo que se acreditava profeta, Estamira. Não esquecia mais.

Não esqueceria mesmo. Recordou de uma frase dessa mulher que enchia a tela do cinema, num dos raros instantes em que sua atenção desviou-se da vizinha. “Esse mundo só tem um jeito. Botar fogo em tudo e começar do zero. Se tiver que me queimar para as pessoas terem lucidez, pode queimar”.

Pensou se a bruxa não seria Estamira. Se não seria ela a mandante da queima de estoque rodoviário, do genocídio de prédios públicos e privados para depois ver a redecoração urbana com sua coleção de chapéus, o represamento do tráfego. Para depois ouvir que a situação estava “sob controle”. Seria a aplicação do estamirismo, em estado ainda bruto.

Não, não! Estamira admitia distorções psiquiátricas, mas não era louca. Falava uma língua estranha, mas nenhuma que pudesse ser identificada como dialeto do pê. Respondia a vários nomes, apelidos, mas nenhum que pudesse ser sinônimo de estupidez.

Esticou o pescoço, equilibrou-se nas pontas dos pés. Leu o que parecia o nome de seu bairro na testa de um ônibus que bufava sobre os carros à frente. Mirou o pulso. Duas horas e 20 minutos de atraso. Finalmente embarcaria. Imaginava o sofá. Olhou na direção contrária. Havia uma represa automotiva ainda mais espessa. Despediu-se da novela. Despediu-se da mínima possibilidade de divisar a vizinha antes de dormir. Teria de contentar-se com o capítulo seguinte, com a noite seguinte.

Lembrou da bruxa. Lembrou do nome da bruxa. Não exatamente do nome, mas de pseudônimos que ele já a viu usar: Barbárie, Resíduo Social, Resíduo Político, Ordem Desordenada, Desordem Coordenada...

Entrou no ônibus, afinal. Sabia que amanhã seria um outro dia. Sabia que tudo estaria sob controle. Sabia mesmo?



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