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Loucos anos 70
Dojival Filho
Do Diário do Grande ABC
27/08/2006 | 19:28
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Sob um regime militar truculento e nada disposto a ouvir qualquer cantiga que não exaltasse as maravilhas de um país “que vai para frente”, a música popular brasileira viveu um dos momentos mais profícuos de sua história: os anos 70. Nesse período conturbado, o público conheceu o fenômeno Secos & Molhados, único a atingir a vendagem de um milhão de discos, marca equivalente a do ‘rei’ Roberto Carlos. Desbundou ao som do ‘expresso futurista’ de Gilberto Gil e do papo ‘qualquer coisa’ de Caetano Veloso. Por fim, dançou até não poder mais no ritmo frenético dos hits das discotecas.

O disco duplo Almanaque Anos 70 – A Trilha Sonora de uma Década Muito Louca (Universal, R$ 32 em média), produzido pela jornalista e escritora Ana Maria Bahiana, autora do best-seller Almanaque Anos 70, é um registro dessa época efervescente. Ao todo são 28 faixas, que refletem o caleidoscópio de sons daqueles tempos.

Seleção – Assim como ocorre no livro, dividido em duas partes, o disco um contém canções da safra 1970-1974, enquanto o dois traz os hits compostos entre 1975 e 1979. A escolha do repertório não foi uma tarefa simples. “Conversei com o Ricardo Moreira (diretor de marketing estratégico da gravadora) e fizemos primeiro uma seleção das músicas mencionadas no almanaque. Deus umas 300, uma loucura. Isso aconteceu porque a música era uma parte vital daquela época. Quando as pessoas queriam expressar o que estavam vivendo e falar de política ou esporte, isso vinha pela música”, explica Ana Maria.

O passo seguinte foi trabalhar com o material disponível. “A gente partiu para aquilo que era possível. Eu já sabia que Roberto Carlos seria impossível, porque ele não autoriza, embora uma das fases mais interessantes dele seja a da década de 70. Partimos do catálogo da Universal por uma razão histórica: na época, ela era a Phonogram, que era ‘a gravadora’”, afirma a jornalista. Por questões burocráticas, outros nomes fundamentais ficaram de fora, como Rita Lee e Clube da Esquina

Censura – No primeiro, um dos destaques é a versão original do clássico Apesar de Você, de Chico Buarque, que não passou pelo crivo da censura em 1970. Sem qualquer interesse de manter relações com pessoas de ‘temperamento sórdido’, Jorge Benjor (então, apenas Jorge Ben), mandou seu recado em Os Alquimistas estão Chegando os Alquimistas.

Inspiradíssimo, Tim Maia verteu com perfeição o sotaque da soul music norte-americana para a linguagem dos trópicos em Azul da Cor do Mar, hit de seu primeiro disco homônimo. Outros artistas que comparecem no CD e ajudaram a forjar a identidade brasuca da música cheia de suíngue criada nos Estados Unidos são Hyldon (Na Rua, na Chuva e na Fazenda) e Tony Tornado (intérprete da antológica BR-3).

O disco conta com outras pérolas setentistas compostas por Caetano Veloso (Chuva, Suor e Cerveja), Gilberto Gil (Expresso 2222), Secos e Molhados (O Vira), Mutantes (Top Top), Novos Baianos (Preta Pretinha), Baiano e os Novos Caetanos, dupla formada pelos humoristas Chico Anísio e Arnaud Rodrigues (Vô Batê Pá Tu), entre outros.

O segundo álbum traz sucessos das Frenéticas, Zé Ramalho, Belchior, Gal Costa, Azimuth, Cassiano, Benito di Paula, Sidney Magal, Guilherme Arantes, Peso, Elis Regina, Maria Bethânia e Alcione.

Ouro de Tolo – Testemunha privilegiada dos acontecimentos mais relevantes daqueles tempos de lisergia, Ana Maria foi estagiária na redação da edição nacional da revista Rolling Stone, que, em meados de 1972, contava com outras figuras célebres do universo pop brasuca, entre eles Luiz Carlos Maciel e Ezequiel Neves.

Desde então, coleciona ‘causos’ de ícones da MPB como Raul Seixas (1945-1989), de quem foi amiga. “Tenho uma pequena participação na história de Ouro de Tolo. Na época, um dos points do Rio de Janeiro era os jardins do conjunto de prédios do Clube dos Jornalistas. A gente chegava e ficava batendo papo ali. O Raul vivia zoando comigo porque eu era fã do Bob Dylan e todo mundo zoava ele porque era fã do Elvis. Um dia, fui na casa do Raul fazer uma entrevista. Ele me recebeu com um caderno e o violão na mão”.

Raulzito entoou os primeiros versos da canção, um contundente tapa na cara da acomodada classe média nacional. “É tudo culpa sua. Você fica falando do Bob Dylan e eu fiz uma música que nem às dele, que vai e não não volta, sem refrão”, disse o maluco beleza à Ana Maria. Raul, que tinha então pouca experiência como letrista, estava muito inseguro quanto ao resultado.

Passado e futuro – Atualmente, a jornalista, que trabalhou nos mais importantes veículos de comunicação do país, se dedica a traduções e à biografia da coordenadora de Inteligência da Secretaria de Segurança do Estado do Rio, Marina Magessi. Em novembro, deve estrear o filme 1972, uma produção dela em parceria com o marido, o também jornalista José Emílio Rondeau.

Sobre as diferenças entre o Brasil da década de 70 e o de 2006, ela faz um balanço sem traço de saudosismo. “A gente ganhou uma rede nacional de comunicação. O orelhão, por exemplo, é uma invenção dos anos 70. Mas, perdeu a inocência, a capacidade de não ser cínico, de acreditar em ideais”.




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