Política Titulo História
A vergonha desenterrada
Por Raphael Rocha
19/03/2018 | 07:05
Compartilhar notícia


Executado pelo comando do regime militar em abril de 1971, Dimas Antônio Casemiro teve seus restos mortais identificados quase 50 anos depois, com resultado anunciado no dia 20 de fevereiro. Se não fisicamente, a história dele, um dos integrantes do MRT (Movimento Revolucionário Tiradentes), está ideologicamente ligada ao Grande ABC. 

Natural de Votuporanga, Interior de São Paulo, Dimas trabalhava com gráfico na Capital. Conheceu Devanir José de Carvalho, mineiro de Muriaé, e que havia chegado em São Bernardo no fim da década de 1950 em busca de emprego nas fábricas que se instalavam na cidade. Conseguiu atuar como torneiro mecânico na Toyota e, apesar de receber salário que lhe conferia uma vida de tranquilidade e comodidade, optou por lutar contra a ditadura militar, instalada em 1964.

Devanir havia traçado uma trajetória na luta clandestina contra o regime, principalmente quando fundou o então Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema ao lado de outros trabalhadores. Se filiou depois no PCdoB, participou da Ala Vermelha no Rio de Janeiro, até planejar o MRT, organização que combateria a ditadura por meio de armas. O grupo teria de ser restrito, com, no máximo, dez pessoas. Devanir chamou seus irmãos e alguns amigos. Entre eles, Dênis Casemiro, que trabalhava na Volkswagen e que tinha militância sindical. Dênis Casemiro era irmão de Dimas, que topou ir ao MRT.

O MRT tinha oito pessoas. “Neste grupo de fogo tinha o Devanir, o comandante da organização. O outro (líder) era o Dimas e o outro era meu pai, Joaquim Alencar de Seixas. A gente tinha essa divisão, esse grupo fechado, tinha preocupação de estar próximo um do outro. A relação era de irmandade”, lembra Ivan Seixas, que, aos 16 anos, integrava o grupo de luta armada. “O Henrique, que era o Devanir (os militantes contra o regime usavam codinomes), era irmãozão. Meu pai tinha 49 anos, acolheu a todos. A gente vivia muito próximo, cada um com uma maluquisse. Dimas tinha cuidado com o dente, queria saber se eu escovava os dentes. O Devanir era mais descolado, mais tempo de luta armada, tinha decisão imediata para as coisas”, descreve Ivan, 61 anos.

Dentro do MRT, Dimas era chamado de Rei. O codinome foi adotado pela habilidade dele em manusear mimeógrafos. Antes, adotara Fabiano como nome. Fabiano é seu filho, que vive atualmente em Votuporanga. “A gente sabia da atuação do Devanir no Grande ABC. Sabíamos que tinha o Devanir, o Derly (irmão de Devanir), que haviam fundado o Sindicato dos Metalúrgicos. Mas, embora a gente tivesse atuação em vários lugares, não estivemos na região, não. Isso era com o Devanir”, relembra Seixas.

Algumas ações do grupo foram exitosas. A principal delas foi o sequestro do cônsul-geral japonês no começo dos anos 1970, Nobuo Okuchi. A atuação do MRT foi conjunta com a Resistência Democrática e a Vanguarda Popular Revolucionária. A negociação envolveu a libertação de presos políticos. Em troca do cônsul japonês foram soltos cinco presos e três crianças.

No dia 5 de abril de 1971, às 11h, Devanir estava em um veículo Volkswagen na Rua Cruzeiro do Sul, Tremembé, na Capital. Tiroteio foi testemunhado no local. Duas versões para o fato foram registradas, como contam Derly de Carvalho e Cido Faria, coordenador do Centro de Memória do Grande ABC. A oficial, dita pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), afirmava que Devanir havia sido morto depois de ter atirado em policiais, que revidaram. Apesar de trechos contraditórios nos laudos, a narrativa foi confirmada pelo regime militar.

Mas a versão de militantes aliados de Devanir divergiu completamente. Ivan Seixas contou à Comissão Nacional da Verdade que Devanir foi, de fato, alvejado na Rua Cruzeiro naquele 5 de abril de 1971, mas não morreu ali. Foi levado ao Dops e passou por sessões de tortura comandadas pelo delegado Sérgio Fleury e pelo capital Ênio Pimentel Silveira. “Tanto que organizamos uma ação para tirá-lo de lá. Só que, no dia 7, à noite, mataram ele. Ele era nosso comandante, quem tinha muita informação”, comenta Ivan, ao Diário.

Os remanescentes do MRT buscavam se reorganizar sem a principal liderança. No dia 15 de abril daquele ano, Henning Albert Boilesen, presidente da Associgás e da companhia Ultragaz, além de diretor da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), foi assassinado. Recaiu no MRT a autoria do crime, que teria acontecido para vingar a morte de Devanir. Acusação essa nunca comprovada.

Fato é que, no dia seguinte, Joaquim e Ivan Seixas foram presos e levados ao Dops. Lá, torturados. Ivan resistiu. Joaquim não. E, na cadeia, souberam da morte de Dimas. Agente do regime militar infiltrado, Gilberto Faria Lima, apelido Zorro, criou uma emboscada ao seu colega de casa. Dimas foi fuzilado. “Pegamos o Rei”, cita Ivan ao repetir a frase que os militares falavam.

Dimas e Dênis Casemiro (assassinado em maio de 1971) foram enterrados no que ficou conhecida como a vala clandestina de Perus, dentro do cemitério. Além das dos irmãos, outras quatro ossadas foram encontradas na década de 1990. A ditatura acabou oficialmente em 1985.  




Comentários

Atenção! Os comentários do site são via Facebook. Lembre-se de que o comentário é de inteira responsabilidade do autor e não expressa a opinião do jornal. Comentários que violem a lei, a moral e os bons costumes ou violem direitos de terceiros poderão ser denunciados pelos usuários e sua conta poderá ser banida.


;