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De Lulacá a Lulalá, região vê 30 anos de profundas transformações
Por Daniel Lima
Do Diário do Grande ABC
17/04/2005 | 12:29
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Há diferença abissal entre a conjuntura em que o presidente Lula da Silva vai comemorar na segunda-feira os 30 anos do chamado Novo Sindicalismo, e o Lula da Silva presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. O Grande ABC que experimentou o renascimento de ruidoso, tormentoso e conflitante modelo de aproximação entre capital e trabalho é diferente do Grande ABC herdado pelo presidente da República. Para o bem e para o mal, esses 30 anos valem muito. A região e o Brasil seriam muito diferentes se não houvesse essa história para contar.

Há forte diferença socioeconômica entre o Grande ABC do começo da carreira sindical de Lula e o Grande ABC do presidente da República saído de bases corporativas para o braço do povo. O Lula da Silva metalúrgico vivia num país autárquico na economia e autocrático na política. O Lula da Silva presidente da República encontra um mundo quase todo democratizado e de fronteiras cartográficas eliminadas em milésimos de segundos de transações financeiras que podem alterar a taxa de juros, a inflação, os investimentos. A tecnologia da informação imprimiu ritmo tão veloz aos negócios que não resta alternativa senão ajeitar-se de alguma forma nas bordas da globalização, sob pena de rodopio e queda nas profundezas do anonimato internacional.

O Brasil e o Grande ABC do Lula sindicalista têm pouco a ver com o Brasil e o Grande ABC do Lula presidente. Lamentavelmente, no caso do Grande ABC, a desvantagem é notória. Há 30 anos, o Grande ABC tinha orgulho da máquina industrial de produzir riqueza e vivia acanhamento do servilismo de um operariado amorfo. O Grande ABC de hoje está quase enviuvado. Não que tenha perdido de vez o estoque industrial. O problema é que foram tantas as baixas ao longo do período que a horda de deserdados está desencantada em forma de desemprego, subemprego e autonomismo quebra-galho.

Contraponto – Os empregos abundantes do passado com o contraponto de combate às relações trabalhistas exploratórias e desrespeitosas viraram pó. Vieram os fantasmas da evasão industrial e de filas quilométricas por uma vaga de atendente de call-center cujos vencimentos não alcançam 20% do salário médio dos metalúrgicos.

A galinha dos ovos de ouro da industrialização exuberante cedeu lugar a atividades de comércio e serviços que, de maneira geral, não produzem riqueza de valor agregado. Os indicadores históricos de ICMS, Valor Adicionado, Potencial de Consumo e PIB condenam o Grande ABC a inapelável castigo de despreparo para o enfrentamento de mudanças macroeconômicas. Falta à região esboço de planejamento estratégico econômico.

Os reflexos se fazem notar na ponta inexorável dos dados de criminalidade. O Grande ABC é o 71º pior endereço do Índice de Criminalidade do IEME (Instituto de Estudos Metropolitanos), entre os 75 principais municípios paulistas, que representam 80% do PIB do Estado de São Paulo. Ou seja: onde está a riqueza construída e acumulada ao longo de décadas, o Grande ABC sofre revés vigoroso em um dos mais importantes pontos de competitividade. O número de assassinatos, de roubos e furtos de veículos e de roubos e furtos diversos ultrapassa todos os limites de civilidade.

Fazer do sindicalismo que emergiu com Lula da Silva há 30 anos o alvo preferencial de justificativas de perdas econômicas e sociais do Grande ABC só não é estupidez ideológica ou desconhecimento estatístico porque provavelmente se insere na arena da apelação de torcida organizada.

Dados estatísticos provam que não há diferença alguma entre o esvaziamento da capital paulista e dos municípios do Grande ABC durante o período em que o sindicalismo bravio da CUT (Central Única dos Trabalhadores) dominou o chão das fábricas e o que se praticou em São Paulo onde o Sindicato dos Metalúrgicos sempre esteve atrelado à suposta maior suavidade de uma escola de lideranças como Joaquinzão, Medeiros e Paulinho Pereira.

Mais um elemento de análise para que a quebra industrial do Grande ABC não seja principalmente debitada aos metalúrgicos: os municípios e regiões que mais recepcionaram empreendimentos industriais nas duas últimas décadas, principalmente de negócios evadidos da Região Metropolitana de São Paulo, contam com linhas de atuação de sindicalismo muito mais à esquerda do que os cutistas locais.

Metrópole insana – Numa escala de valores, a saturação da qualidade de vida na Grande São Paulo está na raiz das perdas industriais. Só em logística, segundo dados do setor de transporte, a Região Metropolitana de São Paulo eleva os custos em 30%. Trafegar pelas vias internas da metrópole enquanto o Rodoanel não é integralmente entregue significa zigue-zague de manobras. Quando a guerra fiscal foi incentivada pelo governo do Estado e os municípios perderam a vergonha de competir por riqueza em vez de resignarem-se à espera de milagres, a geografia do interior mais próximo da Grande São Paulo ganhou dezenas de milhares de novas fábricas.

Não faltam, entretanto, condimentos para temperar com sabedoria o prato de indigestões causadas pelo sindicalismo de Lula da Silva mais tarde transformado em correia de transmissão do Partido dos Trabalhadores. Os metalúrgicos erraram em vários pontos, mas mesmo assim, num balanço franco e descontaminado de vieses, o saldo se apresenta positivo.

Primeiro, excederam-se na discriminação ao capitalismo. Ainda contaminados pelas supostas maravilhas de um socialismo que se sustentava pelo amordaçamento da democracia, os metalúrgicos idealizavam um mundo sem patrões, sem sistema financeiro, sem FMI, sem tudo que cheirasse a norte-americanismo e sua incondicional vocação calvinista de preferência pelo indivíduo. Massacrados por sistemas de gerenciamento autocráticos de chefias despóticas, os metalúrgicos alimentavam um sonho de revolução que, finalmente, com o então sindicalista Lula da Silva, acabaram extravasando.

Segundo, cegos pelo antagonismo cartilhesco ao capitalismo, os metalúrgicos enfiaram no mesmo saco de reivindicações grandes, médias e pequenas empresas. Multinacionais portentosas e empreendimentos familiares. Trataram a todos com o mesmo grau de exigências trabalhistas. Arrancavam tudo o que podiam num período de descontrole inflacionário. O repasse aos preços praticados pelas grandes corporações estava garantido pelo controle estatal de planilhas, cujas deliberações sempre dissimuladas de rigidez obedeciam a rituais de privilégios de bastidores enriquecidos por propinas. Já as pequenas e médias dependiam da sempre inglória dupla generosidade de pesos pesados que negociavam à exaustão o suprimento de matérias-primas e a compra de suprimentos industrializados.

Abertura fatal – Submetidos ao torniquete de forças redobradas, como uma barcaça entre rochedos, os pequenos negócios industriais se descapitalizaram até a chegada fatal do governo Fernando Henrique Cardoso e sua abertura econômica completamente açodada. Trocando em miúdos: duramente agredidos e fragilizados ao longo dos anos de rebeldia sindical e de descaso de entidades de classe que sempre miraram as grandes empresas, os pequenos industriais no Grande ABC foram varridos do mapa de produção quando Fernando Henrique Cardoso chegou com uma moeda artificializada, um câmbio valorizadíssimo e uma abertura alfandegária que lançou especialmente as autopeças na boca do leão de uma competição desigual.

Faltam estatísticas do passado como as produzidas ainda recentemente pelo Instituto Brasmarket, que mediu a auto-estima dos moradores da região. Entretanto, é sintomático que além de uma Mauá sem eira nem beira no campo institucional, de eleições suspensas e de prefeito interino, São Bernardo mal passou pela faixa de 50% de aprovação de pessoas que não têm intenção de mudar-se para outro município.

Não é difícil chegar à conclusão de que a capital econômica do Grande ABC não conseguiu repor o orgulho ferido com as perdas automotivas. Diadema também foi abatida pelos ataques sofridos pelas metalúrgicas, mas buscou no campo da cultura popular uma vereda de sustentação do entusiasmo de moradia.

Embora Santo André e São Caetano tenham colecionado os números mais contundentes de esvaziamento econômico no período em que o Novo Sindicalismo fez história no Grande ABC, os níveis de auto-estima não foram abalados segundo os dados do Instituto Brasmarket. Em São Caetano porque claramente se tem um modelo primeiro-mundista de qualidade de vida, facilitada pela exigüidade territorial e pela aguda contribuição fiscal da General Motors. Em Santo André porque a centralidade geográfica que a torna caminho praticamente em comum das relações regionais dos sete municípios, encontrou na área de comércio e serviços base de redução do impacto de perdas industriais.

Trinta anos depois de virar presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e, na seqüência eleitoral, multiplicar replicantes com o mesmo viés ideológico cada vez menos indigesto, o presidente Lula da Silva ainda encontrará em São Bernardo resquícios de radicalismo à moda antiga. São metalúrgicos inconformados com a ordem econômica mundial e que procuram arrebanhar adeptos por meio de discursos e propostas envelhecidos.

Em comum entre os dois momentos, de Lula sindicalista e de Lula presidente da República, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e todos os demais espalhados pelo Brasil não pensam em outra coisa senão em seus próprios associados. Sindicalismo cidadão não passa de expressão desgastada pelo própria distância entre discurso e prática. Os sindicatos atuam preferencialmente em nome dos trabalhadores que lhes garantem recursos e audiência. Os desempregados são problema do Estado.

Sobrevivência – Em muitos casos, não se trata de desprezo a quem não tem mais identificação corporativa. Como as próprias empresas, os sindicatos também precisam recorrer a prioridades gerenciais e, por isso mesmo, não dispensam mecanismos capitalistas de corte de pessoal, de terceirização, de multifuncionalidade. Afinal, o mundo econômico real é bem diferente dos manuais de Estados centralizadores que entraram em colapso com a queda do Muro de Berlim.

Entre o Lulacá de 30 anos atrás e o Lulalá de agora, o Grande ABC saiu do céu e mergulhou no inferno da deserção industrial, do orgulho da carteira assinada ao estoicismo do subemprego, do acanhamento comercial à reluzente ocupação de shoppings, da convicção de um modelo econômico gerador de riqueza à desconfiança de que nem comércio nem serviços segurarão a barra, de níveis civilizados de indicadores criminais a uma numerologia policial que se equivale à da Baixada Fluminense.

No fundo, no fundo, o próprio sindicato ao qual Lula da Silva deu à luz paradoxo de aproximação aos tabefes, não é nem sombra de 30 anos atrás. E nem poderia ser, porque a roda da globalização provoca outros tipos de fricções. Os custos de produção já não saem de planilhas eventualmente acordadas entre fornecedores de insumos e lideranças da mão-de-obra como nos tempos de mercado fechado. Investimentos tecnológicos e em processos cortaram milhares de cabeças no chão de fábricas. Peões já eram. Hoje, em larga escala, são técnicos bem treinados que se misturam a máquinas e equipamentos de comando eletrônico computadorizado. As células de produção substituem o apertar de parafusos. O mundo é o limite.

Comitês de fábricas precisam recorrer a um segundo idioma para manterem-se informados sobre o andar da carruagem das negociações trabalhistas e também dos novos projetos de investimentos. Os trabalhadores descobriram que sem competitividade a próxima fábrica de um grande conglomerado pode ir para a China, para a Índia, para qualquer lugar onde o custo da folha de pagamento entrecruzado com a qualificação do operariado e a outros fatores, como logística e tributos, determinará o destino de uma nova unidade.

Nada disso, de fato, é mais instigantemente desafiador do que a própria carreira do homem que há 30 anos assumiu a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e, na segunda-feira, como presidente da República, reencontrará antigos companheiros de greves e sonhos.




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