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‘Não falta médico no País; falta estrutura’
Por Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
10/06/2019 | 07:18
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André Henriques/DGABC


Superintendente do Hospital Estadual Mário Covas, o médico anestesista e do trabalho Desiré Carlos Callegari avalia que o Brasil não tem falta de médicos e que todas as vagas do programa Mais Médicos poderiam ser ocupadas por recém-formados, mas que falta estrutura aos profissionais. À frente da principal referência em alta complexidade da região desde 2012, ele defende a criação de plano de carreira de Estado, a exemplo do Judiciário, como forma de garantir atenção básica à população. “Não falta juiz ou promotor em nenhuma cidade. O médico recém-formado deveria passar dois anos na promoção de saúde, acumulando pontos para residência.”

Por que o senhor decidiu ser médico?
A vocação veio desde criança. Sempre sonhei ser médico. Não tive médicos na família, mas tinha vocação por leitura de coisas médicas, por me preocupar com saúde, embora nunca tenha sido doente. Então, acho que foi vocação natural. Sempre, desde que comecei a ser estudante, me interessei por assuntos da área médica, apesar de não ter tido influência familiar de nenhuma parte.

Qual a sua relação com o Grande ABC?
Meu pai veio da Itália com mais dez irmãos, foram para Jundiaí (Interior de São Paulo) e meu pai veio para Santo André montar a primeira alfaiataria da cidade. Conheceu minha mãe, que também morava aqui. Casaram-se em 1934 e eu sou o último de três filhos. Nasci, cresci, me formei, me casei em 1974 e tive meus filhos em Santo André. São dois rapazes e uma moça, todos médicos, um anestesista como eu e dois oftalmologistas.

O senhor está à frente do Hospital Mário Covas desde 2012. Quais os principais desafios da função?
Estou no hospital desde 2002, quando foi inaugurado. Já chefiei o serviço de anestesia, fui diretor técnico e em 2012 passei para a superintendência, já estou no segundo mandato, que termina em 2020. O principal desafio que a gente tem quando se dirige hospital escola e que atende exclusivamente o SUS (Sistema Único de Saúde) é a gestão. O sistema hospitalar que o Mário Covas tem é pela OS (Organização Social), pela Fundação ABC. Isso configura que você tem orçamento anual que tem que dar conta da alta complexidade do Grande ABC e também de fora (da região). Desafio grande é esse, você ter orçamento e cumprir metas que o governo do Estado faz. Nesses anos todos a gente tem cumprido essas metas, temos dado retorno para a sociedade e principalmente para a população, que hoje tem problema sério com respeito à saúde. O Hospital Mário Covas não abarca a saúde inteira do Grande ABC, mas é referência em alta complexidade e nesse item a gente tem dado nossa contribuição. Hoje o hospital atende cerca de 50% das emergências, o restante é de atendimento eletivo. Mas atendimento de urgência e emergência vem aumentando gradualmente nos últimos três ou quatro anos por conta da desestruturação dos hospitais municipais nesse tempo, devido à falta de verba. Desemprego também aumentou a procura da população por hospitais públicos. Então, são dois fatores que pressionam atendimentos de urgência e emergência. Apesar de esse ser um dos perfis de atendimento de hospital como o Mário Covas, que tem atendimentos de alta complexidade, cirurgias cardíacas, neurológicas.

Qual a atual situação do hospital, em termos de capacidade de atendimento?
O hospital hoje tem taxa de atendimento alta, naquilo que se propõe, e a gente tem visto que municípios da região também estão trabalhando para que equipamentos municipais possam suprir um pouco dessa demanda. Hoje, a taxa de ocupação diária é de 83%. A região comportaria outro equipamento de alta complexidade, também estadual, para que fossem minimizadas filas de espera dos atendimentos eletivos.

No Grande ABC, apenas metade da população é coberta pelo programa Saúde da Família. Qual o impacto do atendimento básico em saúde para evitar problemas complexos no futuro?

A atenção básica é de suma importância porque evita que as doenças se agravem. Atenção básica adequada previne doenças, ou elas serão tratadas em primeiro momento de forma mais simples, sem complicações. Atendimento básico eficiente vai resultar em número de doenças cada vez menor e com necessidades menores ainda. Com prevenção e tratamento primário de problemas menores, hipertenso não vai ter AVC (Acidente Vascular Cerebral), não vai ter infarto, não vai ter as complicações que demandam atendimento de alta complexidade.

O Grande ABC foi muito afetado pela saída dos profissionais cubanos do Programa Mais Médicos. Como o senhor avaliou esse episódio?

Milito nos órgãos de classe e a gente acha que tem condições, se o governo federal tivesse programa e fizesse plano de carreira como tem juiz, como tem promotor, de ter médicos em todas as cidades. Plano que começa com o profissional na periferia e depois vem para grande município, estaria resolvido o problema. Isso é coisa que o governo federal deveria fazer. Hoje, o grande problema é que nas regiões mais longínquas a gente não consegue ter atendimento primário adequado. Como não tem recurso para fazer isso, se lançou esse programa, que recebeu os médicos cubanos e que tem as suas limitações. Mas nós podemos fazer o Mais Médicos com os diplomados das nossas mais de 300 faculdades. São 40 mil formandos por ano, dando condições para esses recém-formados irem para regiões longínquas, se graduando posteriormente, entrando outros, e fazer o Mais Médicos nosso, local, já que o plano de se fazer carreira de médico de Estado ainda não pode ser feito, talvez por questão financeira. O melhor seria plano de carreira como acontece com promotores e juízes, não faltam esses profissionais em lugar nenhum do Brasil e também não deveria faltar médico. O Mais Médicos foi lançado para socorrer cidades distantes, áreas indígenas, onde os médicos não alcançam. Agora, também não alcançam porque não têm estrutura, não têm exame de imagem, bioquímico. Os médicos se concentram nas regiões Sul e Sudeste porque fazem residência médica aqui, acabam tendo oportunidade de salários melhores, a família pode viver melhor e acaba todo mundo ficando por aqui. O Mais Médicos remunera melhor porque eles têm ajuda de custo, alojamento, vários itens que agregam ao salário e eles podem dar situação melhor para as famílias. Eu vejo que essa situação do Mais Médicos é temporária, a hora que o Brasil tiver investimento para se construir carreira de médico em nível nacional vamos ter um profissional em cada região longínqua, que passará um tempo e depois vai dar lugar a outros profissionais.

Ainda temos muitas localidade sem médicos, mesmo aqui na região. Que resposta dar para a população?
O médico recém-formado quer fazer residência. Teria que montar sistema em que nos dois primeiros anos esse profissional teria que fazer atendimento de promoção da saúde da população e ganharia pontos para a residência. Então teríamos os médicos em todas as regiões. Hoje, temos 50% das vagas preenchidas, ainda faltam 50%, mas esse é plano e tem que ser bem remunerado. E aí se monta fluxo, para garantir o profissional em todas as cidades, até que seja possível se construir carreira médica de Estado. Todas as entidades de classe entendem que é essa é a solução. Falta dinheiro, a gente sabe disso, e por isso tivemos que nos calcar em programa populista, mas que se mostrou eficiente, e colocou médicos onde era necessário. Agora, o governo federal tem que regular isso. Não sei quando vamos ter estrutura e dinheiro para ter carreira de médico, o que é provisório no Brasil pode durar dez anos. Agora, tem que pagar melhor para quem vai ficar no Xingu e oferecer a estrutura que garanta a permanência dele na região. Ter acesso a exames de imagem, que pode mandar pela internet para grande hospital. Fazer Medicina hoje apenas com estetoscópio não é possível.

O plano de carreira é o bastante para atrair o médico para a atenção básica?
Acredito que sim. Todo médico recém-formado deveria ter a experiência no setor básico da saúde, cumprir essa etapa, resolvendo problema de atenção básica ele vai rodar e optar por especialização, onde vai para centro maior. É perfeitamente factível, o MEC (Ministério da Educação) pode bolar plano para isso e se fazer com todas essas faculdades que temos uma atenção básica bem larga. Dá para fazer, com 40 mil médicos formados por ano. Precisa de determinação firme do MEC nesse sentido. Sem isso a gente não vai conseguir resolver. O atrativo financeiro resolveu a metade, como a gente viu no Mais Médicos. A outra metade vai precisar de outros incentivos.

Quais são os desafios atuais para a formação de novos médicos?
Temos excesso de faculdades no Brasil e faltam professores para dar aulas. O CFM tem feito exames que provam que a cada ano as notas dos egressos (recém-formados) são menores. Existe deficiência no ensino, deficiência no médico formado e precisamos melhorar isso. Os Estados Unidos passaram por isso e tiveram que, em dado momento, fechar um monte de faculdades. Hoje eles têm 220 faculdades, com população muito maior que a nossa. Não adianta a gente pôr médico na rua sem fiscalização.

Como o senhor avalia a descentralização da farmácia de alto custo?
Era um sonho nosso, do Consórcio. Para evitar nossas filas. Nós atendemos 1.500 pessoas por dia, é muita coisa, esperas de quatro a cinco horas. A tendência agora é diminuir essas filas. Se der certo para que Santo André e São Caetano também façam parte do sistema vai melhorar muito. Mas mais que isso, o investimento também tem que aumentar. Não adianta ter agilidade na entrega se não tenho o remédio que a população precisa. Dos mais de 240 itens que a gente distribui, falta em média 40 a 50 por dia. Setenta por cento são fornecidos pelo governo federal, então falta investimento para garantir a oferta de remédios. 

RAIO X

Nome: Desiré Carlos Callegari

Estado civil: Casado

Idade: 70 anos

Local de nascimento: Nasceu e mora em Santo André

Formação: Médico anestesista e do trabalho, doutor em ciências da Saúde

Hobby: Viajar

Local predileto: Campos do Jordão, Interior de São Paulo

Livro que recomenda: Reorganize Sua Bagagem, de Richard J.Leider e David A.Shapiro

Artista que marcou sua vida: Robert de Niro

Profissão: Médico e professor universitário

Onde trabalha: Hospital Estadual Mario Covas, em Santo André




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