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Muito além do desejo
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
17/04/2006 | 10:13
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De Terrence Malick já disseram que é um diretor muito-gás-e-pouca- soda (daqueles que mais anunciam do que executam) e até que ele gostaria de ser o J.D. Salinger do cinema, pois, tal como o autor de O Apanhador no Campo de Centeio, realiza uma obra-prima para depois pedir asilo da arte. Mas, transcendendo os rótulos, é realmente complicado analisar sua filmografia. E o fato de ele, num intervalo de 33 anos, ter realizado somente quatro longas-metragens torna ainda mais cabeluda a tarefa, uma vezque os hiatos de produção sugerem a fragmentação de remetências e procedimentos artísticos.

Não custa tentar, contudo, encontrar correspondência entre Terra de Ninguém (1973), o primeiro filme, e O Novo Mundo (2005), o mais recente, em cartazem São Paulo.

O maior tempo de inatividade de Malick foram os 20 anos entre Cinzas no Paraíso (1978) e Além da Linha Vermelha (1998), seu segundo e terceiro longas respectivamente.

Não coincidentemente, a mesma distância entre a consagração do artista (ganhou o prêmio de melhor diretor em Cannes por Cinzas) e a celebração do retorno (Além da Linha Vermelha recebeu sete indicações ao Oscar). Um intervalo que estimula lendas que o diretor não faz questão de desmentir (é conhecida sua aversão a ser fotografado.

Apesar dos abismos cronológicos, O Novo Mundo confirma algumas prioridades autorais. E é impossível ignorar a composição de imagens, uma arquitetura sustentada por planos gerais que procuram embevecer (para não dizer embriagar) os olhos. O Colorado em cores de mormaço de Terra de Ninguém; os campos de batalha de Além da Linha Vermelha; a América virgemesmeralda de O Novo Mundo; e os tons crepusculares de Cinzas (cujas filmagens, para confirmar a bulimia estética de Malick, foram realizadas em horários específicos durante a aurora e o anoitecer). Apreensões épicas do pró-fílmico (o conjunto de elementos situados à frente da câmera) para contrastar com o lirismo contraditório dos personagens.

E, neste ponto, acessamos uma outra mecânica artística. Não são só a Pocahontas e o John Smith de O Novo Mundo que encontram-se divididos entre o desejo e as expectativas de seu meio social. No rosário de romeus e julietas de Malick estão os casais centrais de Terra de Ninguém e de Cinzas no Paraíso, que fazem do amor mútuo um distintivo para implodir as estruturas sociais na qual estão inseridos. O que parece draminha de Supercine ganha contornos de meditação sobre o desejo.

Simplesmente porque Malick evita explorar o amor como mera conclusão do ato; o que lhe interessa é descascar o sentimento, demonstrar quando deixa de ser desejo para tornar- se dever, débito ou a penhora para uma ação fora do círculo íntimo, uma ação social.

Curioso que a prova cabal disso seja Além da Linha Vermelha, filme sem uma única cena de romance. Na narrativa multifocal do longa, há o episódio do soldado que se corresponde com a mulher, separados por um oceano. O amor é restaurado como desejo, justamente porque está traduzido em saudade, justamente por causa da distância dos corpos, da bolha espacial que proíbe o ato. O paradoxo do amor em tempos de cólera. Isso fazMalick ser mais do que simples pintor de paisagens ou profeta do tédio, como costumam pregar por aí.




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