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Sílvio Lancellotti - Soufflé: triunfo ou desespero
Especial para o Diário
13/01/2008 | 07:04
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Seguramente um produto pré-histórico, com referências documentadas de mais de 10 mil anos, o grão de feijão, um legume da família das Fabáceas, habitualmente e erroneamente considerado um cereal, se originou, em formas múltiplas, em todos os continentes do planeta.

A Ásia reivindica, já daqueles idos, a domesticação do feijão-soja, que se tornaria crucial, no Novo Mundo, a partir da segunda metade do século 20, como integrante de rações animais e como o fornecedor de um óleo bem barato. De fato, talvez o feijão-soja seja o mais antigo que a humanidade conhece e hoje usa. No entanto, comunérrimo também nas Américas, nas suas várias cores, nos seus diversos formatos, em particular de Cuba ao Brasil, o grão singelo é um alimento cotidiano, e crucial, especialmente na parceria da carne, desde os povos do pré-descobrimento.

Aztecas, maias, incas, tupis e guaranis se acostumaram a saborear tipos como o branco, o carioquinha, o de-corda, o fradinho, o jalo, o manteiguinha, o mulatinho, o preto, o roxinho, o verde ou o vermelho, todos provenientes da mesma matriz, da espécie Phaseolus vulgaris.

Moros e Cristianos - Por volta de 1500, quando os exploradores da Espanha e de Portugal aportaram no Ocidente, constataram que os nativos locais aproveitavam inúmeras receitas com tal grão essencial. E o incorporaram ao jovial arroz (Oryza sativa), que haviam descoberto na Ásia. O prato de feijão com arroz se transformou numa obviedade do Caribe até o Chuí. Em Havana, por exemplo, qualquer restaurante serve, no seu menu mais elementar, a mistura de “Moros y Cristianos”, o feijão negro com o seu arroz super-claro, além de um belo bife de boi e batatinhas solenemente fritas.

Neste domingo, me permitam o leitor e a leitora, homenageio um feijão de menor procura cá no País, aquele de grão branco. Não, eu não tratarei da robusta Cassoulet dos franceses, que o combina ao porco e aos embutidos. Nem da Sholent dos judeus, que o integra à inefável cevadinha nas jornadas do Shabat do final de semana.

Pretendo voltar à minha infância, quando o meu pai perpetrava, aos domingos, a sua linda Insalata Cardinale, que valia por um banquete. E aos filmes do vaqueiro Roy Rogers (1911-1998), que eu via num aparelhinho Capehart, de televisão em preto-e-branco, nos entornos de 1955.

Então, na parceria da sua namorada Dale Arden, do seu ajudante Gabby Hayes e do seu esbelto cavalo Trigger, o caubói habitualmente acampava em uma ravina qualquer e, daí, num fogo de lenha do mato, perpetrava um jantar de feijão branco com bacon e com maple syrup, um gênero de mel extraído de uma árvore da estirpe das Sicamoras. Mais do que o enredo dos filmes, eu me fascinava com as cenas do Roy a cometer aquele feijão inacreditável. Pois, enfim, já um profissional da gastronomia, lá por 1970, eu encontrei, numa loja de iguarias de San Francisco, na Califórnia, uma latinha da maravilha...

Provinha da marca Van Camp, de Indianópolis, meio-Oeste dos EUA – e o seu rótulo assegurava que a empresa fornecia a delícia desde 1875. Testei, gostei, mas decidi aprimorar a formulação ao meu estilo. Conforme, imagino, eu atesto a seguir. Paralelamente à Insalata Cardinale do meu pai, ofereci à família, numa mesma jornada, o feijão do Roy e da Van Camp, com todas as minhas intromissões. Juro, juro, mesmo, que não sobreviveu um só grão...

Receitas

INSALATA CARDINALE

Ingredientes, para uma pessoa: 1 e 1/2 xícara, de chá, de feijão branco, já cozido, frio, bem no ponto al dente. 4 colheres, de sopa, de azeite de olivas, preferivelmente o virgem. 1 colher, de sopa, de vinagre balsâmico. O sumo, coado, de 1 laranja-da-bahia, ou de polpa vermelha, sanguinàccia. 2 colheres, de sopa, de argolinhas de cebolinha verde. 2 colheres, de sopa, de folhinhas de alecrim fresco. Sal. 1 beterraba, já cozida em água e em um pouco de vinagre, aparada à faca, como na fotografia. Gomos de laranja. Raminho de alecrim.

Modo de fazer: Numa cumbuca, marino o feijão já cozido no azeite, no vinagre, no sumo de laranja, na cebolinha verde, no alecrim e num tico de sal, a gosto. Mantenho, por meia hora, virando e revirando, com delicadeza, a cada cinco minutos. No meio de um prato charmoso, coloco a beterrraba. Envolvo com os feijões. Decoro com os gomos de laranja e com o ramo de alecrim.

FEIJÃO DO ROY ROGERS

Ingredientes, para uma pessoa: 4 colheres, de sopa, de óleo de milho. 2 colheres, de sopa, cheias, de bacon picadinho. 1 e 1/2 xícara, de chá, de feijão branco, cozido, frio, bem no ponto al dente. 4 colheres, de sopa, de maple syrup (encontrável em bons supermercados) – ou, na sua ausência, de melaço de cana. 1 colher, de sopa, de mostarda amarela. Pimenta-do-reino, moída na hora. Uma longa fatia de bacon, bem fritinha, e crocante, em óleo de milho.

Modo de fazer: Numa frigideira de tamanho adequado, aqueço o óleo de milho e douro o bacon, sem permitir que pipoque. Agrego o feijão. Misturo e remisturo. Despejo o melaço e a mostarda. Mexo e remexo. No prato, cubro com a pimenta-do-reino, a gosto, e enfeito com a fatia crocante de bacon.

Curiosidades

O PREÇO BARATO E MUITAS QUALIDADES

Ironicamente, o Brasil desfruta bem menos feijão do que se imagina, e do que o seu povo necessitaria. Por aqui, desde 1970, o rendimento do produto desabou de 650 quilos por hectare de plantio a simples 500. Enquanto isso, em nações de tradição supostamente inferior, como os Estados Unidos, o Japão, a Itália e a Turquia, a média já ultrapassou os 1.600. Uma pena. Apesar da sua aparente trivialidade e do seu preço barato, o feijão propõe uma infinidade de qualidades nutritivas. Qualquer que seja, do branco ao preto, ostenta diversos metabólitos fitoquímocos, compostos fenólicos e flavonóides que auxiliam no controle natural de problemas como a obesidade, a diabetes e até os distúrbios cardiovasculares. A única contra-indicação: comer feijão estimula os gases...


A METODOLOGIA IDEAL DA FEITURA

Com a exceção do japonês azuki, da fava mediterrânea, do manteiga e daquele chamado de-corda, o feijão das feiras e supermercados já secou, perdeu praticamente toda a água da sua composição. Por isso, antes de entrar na panela, precisa atravessar um processo de reidratação. Simplérrimo. Basta colocá-lo numa terrina e cobrir o seu volume com água filtrada, no máximo dois dedos acima da superfície, por cerca de três horas. Esse procedimento, aliás, também serve para lavá-lo de eventuais sujidades e de impurezas. Daí, basta relavá-lo e levá-lo à panela, sempre com dois dedos de folga de água, um toque de sal e os temperos da sua paixão, como o alho, o louro e, no caso do feijão diário, algum naco de bacon, rodelinhas de paio e ou de lingüiça.




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