Cultura & Lazer Titulo Centenário
Antes e depois de Guimarães Rosa
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27/06/2008 | 07:10
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Não dá para pensar a obra de João Guimarães Rosa (1908-1967), cujo centenário de nascimento é hoje, ignorando que sua produção literária é desencadeada pela face fantástica (ou mitológica) da realidade, sempre a partir do sertão de Minas Gerais. O sertão está em toda parte. Esse mundo está dentro e fora do homem, ensinou o escritor nascido em Cordisburgo (MG).

Essa concepção é fundamental em sua obra, resultado da assimilação e transfiguração de duas vertentes da literatura brasileira da primeira metade do século passado: regionalismo e espiritualismo.

A paisagem do sertão se tornou tão importante como elemento narrativo quanto a investigação subjetiva dos personagens. Rosa mostrou que o jagunço, mesmo sem saber ler, também se dedicava a especulações metafísicas, em meio à violência produzida pela ordem política e social injusta.

Essa assimilação resultou em algo inédito na literatura nacional, segundo Walnice Nogueira Galvão, uma das maiores especialistas brasileiras na obra rosiana.

"Sua maior contribuição é, sem dúvida, a renovação e o enriquecimento da língua literária", afirma Walnice. "Nenhum outro autor brasileiro alcançou esse resultado, nem em poesia, nem em prosa, nem em dramaturgia, nem em nada."

Embora inevitavelmente associado a uma região brasileira, o autor de Grande Sertão: Veredas se fez universal, característica nascida na erudição tanto literária quanto poliglota, segundo Walnice. O que surpreende na ficção de Rosa é a capacidade de reproduzir misteriosos processos de criação da língua, como se o escritor estivesse simultaneamente visitando o começo e o futuro da mais alta literatura.

O médico e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967) era um produtivo criador de enredos, personagens e palavras. Sua imaginação ficcional, sempre pronta a se revestir de uma aura mágica, assombrou a literatura brasileira no século passado. Professora de literatura na USP, Walnice não esconde o fascínio que a erudição universal, a inovação lingüística e o gosto de Rosa pelo mistério exercem.

A respeito de A Terceira Margem do Rio, um dos contos rosianos mais célebres, ela afirma: "Para escrever a respeito dessa estória, seria necessária uma mão iluminada como a de Guimarães Rosa." Essa mão lutava contra a escrita de lugares-comuns: brincava com as palavras, estava a serviço do espanto de que elas são capazes quando se descobrem os seus poderes. Às vezes, Rosa "escreve como quem está em estado de graça".

A admiração pelo literato mineiro, no entanto, não é limite para Walnice pensar, com rigor e vasto arsenal teórico, a obra daquele que proporcionou um salto evolutivo à língua literária no Brasil. Seu livro mais recente, Mínima Mímica (Companhia das Letras, 352 págs., R$ 53), prova essa percepção.

Nesse conjunto de ensaios, a estudiosa utiliza variadas abordagens, da psicanálise e filologia à mitografia e história. Dividido em três partes, Mínima Mímica contempla livros diversos de Rosa. Analisam-se não só os experimentos lingüísticos, em que Guimarães Rosa fundia sufixos de línguas diferentes, criando expressivos neologismos, mas o gosto por culturas longínquas no tempo e no espaço.

Músicos se inspiram no autor

Em todo fim de tarde o nhambu, uma ave do sertão, anuncia com o seu canto o pôr-do-sol, é o começo da noite com os seus sortilégios.

Conhecido como nhambu-relógio por demarcar a hora do lusco-fusco, palavra da predileção de Rosa, o nhambu aponta para o fim do trabalho: é a entrega à cantoria. Inspirado nesse pássaro que volta e meia aparece nas obras de Guimarães Rosa, um grupo paulistano - que se vale do regional para produzir uma música em direção ao universal - se batizou de Nhambuzim, acrescentando o carinhoso diminutivo.

"Guimarães Rosa conta, a gente canta e reconta", diz o pianista Xavier Bartaburu sobre a fórmula do Nhambuzim no primeiro CD, Rosário. O trabalho será apresentado em show gratuito hoje, às 19h30, no Centro Cultural São Paulo (tel.: 3383-3400).

"Mas é preciso deixar claro que o Nhambuzim não é o grupo do Guimarães Rosa, usamos os personagens e enredos, a mitologia do sertão, que ele inventou como gatilho das nossas criações", diz o compositor Edson Penha.

Nhambuzim é mais uma confirmação da tendência da obra rosiana de extrapolar os limites da literatura brasileira, para a qual é poderoso modelo até hoje, para servir de alicerce à música, ao teatro e ao cinema. Com resultados notáveis,como o longa-metragem A Hora e a Vez de Augusto Matraga" (1965), de Roberto Santos, a encenação de Grande Sertão: Veredas por Antunes Filho e as composições de Milton Nascimento, Chico Buarque e Caetano Veloso, entre outros.




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