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Mulheres são minoria no comando de universidades

Entre os alunos, em contrapartida, elas são maioria dos que ingressam no ensino superior

Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
08/03/2021 | 00:01
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Nario Barbosa/DGABC


"Antes de o prefeito confirmar minha nomeação, três professores o procuraram e disseram que eu dava aulas de sandália e usava mochilas.” A história, contada hoje em tom de humor – e quase incredulidade – é apenas um trecho da trajetória da professora de direito do trabalho da Faculdade de Direito de São Bernardo, Eliana Borges Cardoso, única mulher a ocupar o cargo de direção da instituição em seus 56 anos de história. Na falta de argumentos que depusessem contra sua formação ou competência, colegas de trabalho tentaram barrar sua nomeação apelando para críticas às suas escolhas pessoais. No Brasil, apesar de ser a maioria dos alunos (57% em 2019), as mulheres ainda ocupam poucos espaços de comando nas instituições de ensino superior (28,3% nas universidades federais em 2018).

Eliana esteve à frente da Faculdade de Direito de São Bernardo – onde também se formou – entre 2001 e 2005. Seu nome foi validado pelo então prefeito Maurício Soares (à época no PT) em uma lista tríplice. A professora teve 72% dos votos. Antes de fazer história e ser a primeira – e por enquanto única – diretora da faculdade, já havia provocado transformações, como a instalação de banheiro feminino junto à sala dos professores.

A docente ingressou na faculdade em 1981, aos 17 anos, e seus colegas de estudos eram, em sua maioria, homens com mais de 25 anos. “Foi um período delicado, porque era em plena ditadura militar, eu, jovem, tive uma formação voltada à teologia da libertação”, relembra. “A gente lutava, tínhamos bandeiras contra a ditadura, por eleições diretas, entrei com esse idealismo”, completou. 

Passados quase 16 anos do término de sua gestão, a docente avalia que outras mulheres não ocuparam seu lugar não por falta de vontade ou capacidade, mas porque não existe um ambiente que favoreça a ascensão feminina no comando da instituição. “Vejo essa mobilidade muito lenta, porque são 56 anos e fui a única dentro de um contexto, na época, em que havia uma vontade de mudanças”, afirma. 

A professora afirma que “de maneira geral o ambiente acadêmico ainda é muito patriarcal e constrangedor e, no momento atual, de avanço das pautas conservadoras, diversos grupos minoritários vão sendo atingidos, como numa hierarquia de opressões. Em uma crise de desemprego, a mulher é a primeira a perder o trabalho. Entre homens e mulheres, as mulheres são as maiores vítimas do desemprego. Entre as mulheres, as pretas são mais vítimas do que as brancas. As transexuais, mais que as cisgêneros e por aí vai”, exemplifica Eliana. “Se queremos buscar igualdade, devemos dar a essas pessoas, às mulheres, às negras, às transexuais, condições de ocupar espaços de decisões”, comenta.

Eliana lembrou que, recentemente, após intenso processo de diálogo, uma professora negra foi escolhida para presidir uma banca examinadora para concurso de professor titular. “É sempre o argumento de que a gente tem que buscar competência e isso ignora a questão da sobrecarga de trabalho que é imposta à mulher”, argumenta. “Para o homem, a única preocupação é estudar e se colocar no mercado. A gente tem que, todos os dias, lutar para ocupar o nosso espaço”, finaliza. 

Atualmente, entre as instituições consultadas pela equipe de reportagem (Faculdade de Direito de São Bernardo, Fundação Santo André, Metodista , UFABC/Universidade Federal do ABC e USCS/Universidade Municipal de São Caetano) não existem mulheres nos cargos de diretora e/ou reitora.

Professoras acreditam que existem avanços

Atualmente o Grande ABC não tem mulheres no comando de instituições superiores, mas isso não significa que elas estejam totalmente fora dos processos de decisões. Na Faculdade de Direito de São Bernardo, a vice-diretora é a professora Patrícia Caldeira, doutora em direito das relações sociais com ênfase em direitos difusos e coletivos. 

Recém-empossada, Patrícia cita que a professora Eliana Borges, a primeira e ainda única a dirigir a instituição, é uma grande referência e avalia que existem avanços em termos de igualdade de gênero entre professores e gestores de instituições de ensino superior. 

“Como professora acho que existe um espaço muito grande entre homens e mulheres e de bastante igualdade. Uma carreira cada vez mais buscada pelas mulheres, que se identificam muito com o ensino e com a dedicação ao aluno”, afirma.

Pró-reitora de pós-graduação, pesquisa e extensão da Fundação Santo André, Andrea Quintão é doutora em física e desde a graduação tem frequentado ambientes majoritariamente masculinos. Apesar de já ter vivenciado situações de machismo, como quando era coordenadora dos cursos de engenharia e foi confundida com a secretária, a docente também acredita que o preconceito tem diminuído. “A gente vai ganhando o respeito e mostrando por meio do trabalho que somos pessoas firmes e competentes e a confiança (das outras pessoas) abre as portas”, pontua.

Patrícia, que também atua como diretora jurídica de uma empresa, reconhece que existem poucas mulheres nessa posição, mas pondera que, em alguns casos, há resistência por parte delas em assumir posições em que há exigência de grande dedicação. “As mulheres desempenham muitos papéis e, talvez, haja algum receio de não conseguir dar conta de tudo”, completa.

Andrea também reconhece que entre as colegas que se formaram junto com ela, poucas ocupam cargos de direção ou coordenação, mas afirma não ter condições de avaliar se isso se deu por algum tipo de preconceito, mas acredita que não seja esse o caso. “Se a mulher decide ir, ela vai e faz muito bem. Mesmo que um ou outro duvide, a gente se impõe”, finaliza. 

Especialistas avaliam que é preciso ter convicção

Os motivos que explicam a razão de as mulheres ser minoria no comando de instituições de ensino superior são bastante semelhantes aos que fazem com que, segundo dados da ONU (Organização das Nações Unidas), apenas 37% das mulheres ocupem cargos de diretoria no mundo: preconceito, dupla ou tripla jornada, cobrança social pelo desempenho do papel de mãe e esposa. Mas também é preciso convicção de onde se quer chegar em termos de carreira, avaliam especialistas ouvidas pelo Diário.

Palestrante e instrutora de treinamentos empresariais nas áreas de comunicação, liderança e educação, Vivian Rios Stella lembra que programas de pesquisa instituíram licenças-maternidades muito recentemente, o que fez durante muito tempo com que pesquisadoras que queriam ter filhos tivessem que se afastar do trabalho de pesquisa e se dedicar a outras atividades que garantissem suas rendas. “Para quem estava na docência, isso acabava sendo um fator de dificuldade a mais”, pontua.

Para a palestrante, as reitorias das universidades podem ter um olhar de como está a distribuição do corpo diretivo, a fim de equilibrar a representatividade de gêneros e, também, na divulgação cientifica, para que a universidade tenha mulheres como porta-vozes da produção de conhecimento. 

Psicóloga e treinadora comportamental, Fernanda Tochetto destaca que há muito espaço para que mulheres ocupem cargos de liderança, mas que os preconceitos conscientes e inconscientes tornam esse processo desafiador. A profissional destaca que, para ocupar um cargo de liderança, a mulher precisa ter isso claro para si e traçar uma estratégia para atingir esse objetivo. “É importante perguntar para si mesma o que ela quer, o que está disposta a fazer para isso. Ter convicção”, sentencia. 

Fernanda afirma que as empresas e instituições que já estão se propondo a enxergar as potencialidades das mulheres e apostando nas características como resiliência, ser multitarefa, têm conseguido resultados positivos e expressivos. “Estudos apontam que empresas que têm mulheres em cargos de liderança podem aumentar em 21% o desempeno financeiro da instituição”, argumentou.

A psicóloga reforça que quem chega a ocupar cargos de liderança, precisa se apoderar do seu crescimento, desenvolvimento e inteligência emocional. Não é só o ambiente que não proporciona o espaço. A mulher também tem que conseguir administrar os papéis para que consiga se realizar e dar conta de ser equilibrista”, finalizou. 




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