Setecidades Titulo Violência
Pretos e pardos são 86% das vítimas da polícia

Segundo dados da SSP, maioria de mortos em decorrência de intervenção policial tem até 25 anos e se envolveu em roubos nas periferias

Por Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
07/04/2019 | 07:00
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A violência das grandes cidades não escolhe suas vítimas, mas quando se trata de violência policial no Grande ABC, o perfil é facilmente identificável: homens pretos ou pardos, com até 25 anos, que se envolveram em roubos, em ocorrências nas periferias. São esses os dados coletados nos boletins de ocorrência das mortes em decorrência de intervenção policial, disponíveis no site da SSP (Secretaria da Segurança Pública) e tabulados pelo Diário. Em 2018, foram 47 casos. Nos BO’s (Boletins de Ocorrência) que apresentam todos os dados (idade, cor e local dos fatos) é possível verificar que 86% das vítimas eram homens pretos ou pardos; 72,9% tinham até 25 anos, e 80% dos casos ocorreram em bairros das periferias da região. Santo André concentrou o maior número de registros, com 38% (18) das mortes.

Pesquisador do Nevi (Núcleo de Estudos da Violência) da USP (Universidade de São Paulo), Marcelo Batista Neri, afirmou que a violência policial é um elemento que faz parte da segurança pública do País há anos, com particularidades em cada Estado, e que a realidade da Capital se estende às grandes cidades da Região Metropolitana. “São Paulo já foi a segunda capital mais violenta do Brasil. Em um contexto de alto número de homicídios, a violência policial era vista como ‘justificável’. No entanto, hoje temos índices muito menores, mas a letalidade das forças de segurança segue alta”, pontuou.

O perfil das vítimas verificado no Grande ABC não difere muito do padrão nacional, observou o pesquisador. Neri apontou que questões demográficas impactam no fenômeno (cidades e/ou bairros com maioria de pardos ou pretos, por exemplo), mas que também é notório que existe uma diferença de abordagem dos policiais em áreas centrais e periféricas. No Grande ABC, segundo dados do Censo 2010, apenas 35% da população se declara preta ou parda. “Pesquisas no Nevi mostram isso muito claramente.” Além da diferença na abordagem, o jovem preto ou pardo corresponde ao perfil padrão para revistas. “É um racismo que faz parte da sociedade e que todo o treinamento realizado pelas forças de segurança não é capaz de quebrar enquanto paradigma”, observou.

A despeito de iniciativas tomadas pelos governos para reduzir a letalidade policial, como o método Giraldi (conjunto de técnicas e normas que visam diminuir as mortes causadas por policiais e também o óbito dos próprios agentes, em que o oficial atira para parar o conflito/ação, e não para provocar ferimentos fatais), diversos fatores seguem pressionando o indicador, afirmou Neri. “É comum relatos de policiais traumatizados após envolvimento em ações com mortes e que são obrigados a voltar ao trabalho sem uma avaliação psicológica adequada, o que agrava o problema”, citou.

A SSP informou que as ocorrências de letalidade policial apresentaram queda de 46,3% nas cidades do Grande ABC na comparação entre 2017 e 2018 (foram 92 há dois anos) e que uma das medidas desenvolvidas pela pasta para reduzir os casos é a resolução SSP 40/2015, “que garante maior eficácia nas investigações de mortes em decorrência de intervenção policial, com o comparecimento das corregedorias e dos comandantes da região, além de equipe específica do IML (Instituto Médico Legal) e IC (Instituto de Criminalística).” A secretaria citou, também, o PAAPM (Programa de Acompanhamento e Apoio ao PM), que oferece suporte ao policial que se envolveu em ocorrências com morte.

De acordo com a SSP, os casos da região são encaminhados aos setores de homicídios das delegacias seccionais. Dos inquéritos instaurados em 2018, oito foram relatados e enviados para apreciação do Poder Judiciário.

Maioria das ocorrências é de roubo

Dentre as 47 mortes ocorridas em decorrência de intervenção policial no Grande ABC em 2018, 70% (32 casos) delas aconteceram em abordagens relacionadas a roubos, de acordo com os boletins de ocorrência. Segundo a SSP (Secretaria de Segurança Pública) do Estado de São Paulo, nos últimos cinco anos, cerca de 60% dos confrontos entre policiais e bandidos ocorreram em casos de roubo, quando os criminosos estavam armados, subjugando e colocando a vida de pessoas em risco.

Para especialistas e estudiosos do tema, o tipo de crime indica ainda mais sobre a realidade violenta das grandes cidades. Bacharel em Ciências e Humanidades e pesquisador do Seviju – Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça da UFABC (Universidade Federal do Grande ABC) –, Carlos Augusto Pereira de Almeida afirmou que na literatura especializada há dados que apontam que, junto ao avanço de facções criminosas dentro e fora de presídios, foi possível observar queda no número de mortes em locais onde há tráfico de drogas, uma certa “ideologia” de não embate entre forças policiais e traficantes para que não haja prejuízo nas vendas de entorpecentes.

“Ocorre que nos casos de roubo, normalmente, a maioria dos envolvidos não tem ligação com facções criminosas, mas são jovens que praticam tal atividade com um grau maior de violência. Estudos também mostram que esse é o tipo de crime que garante ao indivíduo certo status dentro do seu grupo social”, pontuou.

Em contrapartida, a integrante do grupo Kilombagem, de Mauá, e também da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, Katiara Oliveira, apontou que os crimes de roubo fogem ao que chamou de perspectiva crítica, que é o fato de, muitas vezes, o material roubado já ter um destino, já ter sido encomendado. “Estamos falando de um sistema, de um mercado paralelo, que inclusive alimenta o sistema formal. Vivemos numa sociedade em que a propriedade vale mais do que a vida, principalmente se essa vida for pobre, preta e periférica”, concluiu. 

Polícia vê vítimas como inimigos, afirmam especialistas

O perfil dos mortos em decorrência de conflito policial no Grande ABC em 2018 – 86% eram pretos ou pardos, 72,9% tinham até 25 anos e 80% dos casos ocorreu em bairros periféricos – reflete realidade em que jovens de áreas periféricas são vistos como inimigos, afirmam especialistas e pesquisadores da temática ouvidos pelo Diário.

Bacharel em Ciências e Humanidades e pesquisador do Seviju – Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça da UFABC (Universidade Federal do Grande ABC) –, Carlos Augusto Pereira de Almeida, destacou existência de problema social “sério”, quando jovens pretos e pardos e de classe mais pobre ou estão presos ou estão sendo mortos. “Não estamos dando o devido valor a este grupo vulnerável da sociedade que nasce e cresce com uma desvantagem econômica/social enorme e que facilmente cai nas mãos da criminalidade”, pontuou.

Almeida observou que neste tipo de ocorrência, o agente policial acaba entrando em confronto com essas pessoas já demarcadas com o estereótipo do “inimigo social”. A situação, segundo ele, é alimentada pelas mídias, “que perpetuam o discurso de ódio de que bandido bom é bandido morto”. “Essa pessoa, que apenas exerce a função de agente de segurança do Estado, reproduz toda e qualquer forma de preconceito e criminalização de grupos sociais vulneráveis que já estão enraizados na sociedade.”

Integrante do grupo Kilombagem, de Mauá, e também da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, Katiara Oliveira, ponderou que, embora a Constituição de 1988 determine que as polícias estão submetidas à sociedade, e não o contrário, o que se tem hoje é uma Polícia Militar estruturada desde a ditadura com a perspectiva militar, sendo um desafio para a garantia de direitos. “Uma perspectiva que coloca todo pobre como inimigo, não é nem como suspeito”, afirmou. “Quando a gente olha os dados e vê que a maioria é preto, a maioria absoluta está na periferia, significa que há uma política pública de controle da população pobre e preta. Significa que há um racismo institucional”, acusou.

Para a vice-presidente da Comissão da Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, Thayná Yaredy, os número da região refletem a realidade ampla na qual a população negra, pobre e jovem é vitimizada pela morte. “Podemos ver que este caminho é composto de uma trajetória, tanto de criminalização quanto da relativização de direitos dessas pessoas, o que nos coloca a observar os nanorracismos imputados diariamente na existência de pessoas negras, herança da escravidão neste País.”




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