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‘Há 1 ano e meio se falava sobre abusos em Abadiânia'

Guia de Sto.André suspendeu excursões a Abadiânia após denúncias de que médium era 'mulherengo'

Marcela Munhoz
30/12/2018 | 06:40
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Cesar Itiberê/Fotos Públicas


Atualizada às 11h30

Em constante busca espiritual para curar seus traumas e abusos, inclusive sexuais, a assistente social de Santo André Rita Duenhas, 47 anos, já procurou vários gurus, inclusive na Índia. Em uma de suas viagens, em 2013, foi para a Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, no Interior do Estado de Goiás, reduto do médium João Teixeira de Farias, o João de Deus, 76 anos – denunciado por violação sexual e estupro de vulnerável. “Estava no processo de relembrar e me curar dos abusos que sofri. Tinha muita raiva dos homens por causa disso. Fiquei encantada com o lugar, com a energia. Lembro que por rápida passagem pelo João ele pegou na minha mão e disse que era minha missão levar excursões para lá”, lembra.

E assim a andreense fez, de março de 2013 a julho de 2017, levando para lá grupos, principalmente, do Grande ABC. Rita descreve o local como um “pedaço do paraíso”. “Todos vão vestidos de branco. Tem uma sala de meditação onde as pessoas ficam de três a quatro horas dando sustentação com energia aos trabalhos espirituais da casa. Há contato direto com a natureza. Eles fazem caridade, oferecem comida.” Os atendimentos em Abadiânia são realizados em duas sessões, uma às 8h e outra às 14h, que ocorrem todas as quartas, quintas e sextas-feiras. De acordo com agenda no site da casa, os atendimentos seguem acontecendo.

Rita conta que, durante as vezes em que foi de excursão para lá, chegou a acompanhar duas mulheres chamadas para atendimentos individuais – de acordo com depoimentos, era em uma sala apenas com a presença dele que os abusos aconteciam. Ela também ouviu algumas histórias obscuras sobre João de Deus. “Diziam que ele era muito autoritário, mandava na cidade inteira, e que era meio mulherengo. Mas o que a gente vivia lá era tão incrível, tão surreal, que bastava. Sempre voltava muito mexida de Abadiânia.”

A andreense, porém, parou de levar grupos quando um caso de abuso sexual chegou ao seu conhecimento, há um ano e meio. De acordo com o que ficou sabendo, a vítima tentou denunciar, mas um funcionário da Casa teria pedido para ela colocar panos quentes. “Ele teria dito que João ficava semiconsciente nos atendimentos e que não teria controle sobre o que fazia. Aconteceu o mesmo enredo da maioria dos casos de abuso: ninguém se meteu na história.”

Após todas os casos de abuso que vieram à tona desde o começo do mês – mais de 600 notificações – Rita ficou chocada. “Me indignei e senti muita raiva. Não é só a decepção em relação ao ser humano, mas de alguém que ‘criou o Céu na Terra’ ter um lado tão cruel. Hoje repenso o quanto fomos sugestionados, o quanto é movimento dele e o quanto é nossa própria capacidade de se curar. Além disso, como um líder espiritual pode ter tantas armas em casa (foram encontradas seis)? Não tenho compaixão nenhuma do João, principalmente por ele ter tanta consciência e acesso a tudo.”

Sobre o escândalo ter abalado sua fé, Rita afirma que ela foi modificada. “Fiquei calejada das idolatrias. O problema não está nem nesta nem naquela religião. Mas mesmo desesperados com os nossos problemas, precisamos mudar o conceito de que só se encontra a paz indo até os líderes espirituais ou locais santos. Comecei a entender que a fé, na verdade, está dentro da gente. Cuidado com a hipnose coletiva”, alerta.

A guia, que é pós-graduada em Psicologia Transpessoal, confessa que se sentiu culpada por ter levado grupos para Abadiânia. “Mesmo que não sido diretamente comigo, foi comigo, claro”. Rita está fazendo o que pode para ajudar as vítimas dos abusos de João de Deus. Ela encaminha as pessoas, em extremo sigilo, para grupos de apoio, como o Vítimas Unidas (leia mais abaixo) e o Coame (Combate ao Abuso no Meio Espiritual).

“Se teve um lado bom de tudo isso é que as pessoas se fortaleceram. Sentiram-se mais seguras de contar o que aconteceu com o João de Deus, mas também de falar sobre abusos de familiares, professores e de outros líderes espirituais. Porque não existe apenas o medo de retaliação direta dos abusadores, mas as vítimas também são ridicularizadas e diminuídas por outras pessoas. Não façam isso. Só quem passa pela dor sabe o que é”, desabafa.

Preso em Goiânia há 14 dias, o líder foi exposto por MP

Desde que foi preso em 16 de dezembro, João de Deus está no Núcleo de Custódia, em Aparecida de Goiânia. Na sexta-feira, o Ministério Público denunciou o médium por estupro de vulnerável e violação sexual mediante fraude. A primeira denúncia chegou ao Fórum de Abadiânia com os relatos de 19 mulheres. Destes, quatro compõem a acusação, dez já prescreveram e, em outros cinco, as investigações precisam ser concluídas. 

 O órgão pretende divulgar novas denúncias após receber o depoimento de mais de 100 mulheres. No total, foram mais de 600 e-mails enviados ao endereço disponibilizado para as vítimas (denuncias@mpgo.mp.br). Foram identificadas cerca de 260 mulheres em seis países.

 João de Deus nega todas as acusações. A promotora Leila Maria de Oliveira, da 50ª Promotoria de Justiça de Goiânia, apresentou recurso contra a decisão que revogou uma das prisões preventivas. Na quinta, o juiz Wilson Safatle Faiad garantiu a liberdade do líder espiritual, colocando-o em detenção domiciliar. 

 O líder espiritual também está sendo investigado por posse ilegal de armas. Além disso, foram encontradas com ele pedras preciosas e mais de R$ 1,6 milhão em espécie. A Justiça já determinou o bloqueio de R$ 50 milhões das contas de João de Deus. Ontem, o advogado do médium, Ronivan Peixoto, registrou ocorrência em uma delegacia de Anápolis, Goiânia. Ele alega que uma das fazendas do seu cliente foi invadida e vandalizada. 

Rede de denúncias atua para revelar outros abusadores

 Por 20 anos, Giulio Ferrari, 39 anos, lutou para entender e até estudou o modus operandi de psicopatas para falar sobre os abusos que sofreu dos 15 aos 17 anos. O empresário – e pelo menos outras 80 pessoas – afirma que foi violentado pelo médium Maury Rodrigues da Cruz, 78, diretor presidente da SBEE (Sociedade Brasileira de Estudos Espíritas), com sede em Curitiba (Paraná). 

 Em agosto, Cruz virou réu por estelionato e violação sexual. “Ele é abusador paciente, leva o tempo dele. Mas em seis meses chegou ao ponto de colocar o órgão sexual no meu rosto. A desculpa era que estava morrendo e eu tinha a missão de salvá-lo. Imagina a responsabilidade de manter esse homem vivo”, conta ao Diário. “Me curei quando entendi que o segredo é ter amor próprio. Precisava compreender os motivos de o pedófilo me escolher. A vítima acha, muitas vezes, que é pessoal, mas não. Geralmente vão em quem está frágil.” 

 Para Ferrari, João de Deus é psicopata de baixo quociente intelectual. “Ele não tem paciência. Segundo os relatos, pedia para as mulheres virarem e as estupravam, simples assim.” Psicopatas, segundo ele, com mais de 20 anos de atuação, colecionam pelo menos 300 vítimas. “É possível traçar os perfis físico e psicológico delas.”

 Com conhecimento de causa, Ferrari e outras pessoas que sofreram abusos – incluindo do médico Roger Abdelmassih, 75 (em prisão domiciliar desde junho, após ser condenado a 278 anos de reclusão sob a acusação de estuprar 39 mulheres) – criaram a Vítimas Unidas no Facebook –, já são quase 130 mil participantes –, onde recebem denúncias. De acordo com o empresário, os primeiros casos contra João de Deus saíram de lá. 

 “Estamos perto de relatos de 300 abusos, incluindo de guias, familiares, médicos e professores.” Sobre o médium de Abadiânia, Ferrari afirma que outros crimes – incluindo, segundo ele, tráfico de crianças – devem ser revelados. “O problema da Casa Dom Inácio não é só abuso”, garante.

Leia relato de são-bernardense que visitou Abadiânia

Meu nome é Viviane M. de Castro, tenho 40 anos e fui a primeira vez a Abadiânia em 2014, durante um tratamento de câncer de mama. No total estive lá por oito vezes. Fui criada no catolicismo, mas durante minha infância minha mãe começou a frequentar um centro espírita kardecista, desde então passou a ser a religião que me conforta. A Casa Dom Inácio de Loyola não é considerada um centro espírita kardecista e, sim, uma Casa Ecumênica que recebe pessoas de todas as religiões. Inclusive lá dentro tem muitas imagens de santos.

A primeira vez que soube sobre João de Deus foi por meio de um documentário estrangeiro e, desde então, senti vontade de ir para lá, o que só aconteceu na fase mais difícil da minha vida. A cidade é muito simples, mas ao chegar já me comovi ao ver tantas pessoas de branco, vindas de muitos lugares do País e do mundo que chegam lá pela fé, na esperança de receber uma cura, um milagre ou apenas uma palavra de conforto. Tudo isso associado à tranquilidade e à natureza do local trazem uma energia positiva e inexplicável. Eu nunca tive alguma impressão contrária, sempre me senti em paz.

Quando chegamos na casa, precisamos retirar uma ficha de primeira, segunda vez ou de retorno, então todos ficamos acomodados num salão parcialmente aberto, onde fazemos orações, ocorrem depoimentos, palestras e aguardamos a chamada da ficha. Algumas vezes, João de Deus aparece lá na frente para fazer cirurgias com instrumentos (feitas em pessoas que se dispuseram e que se encaixam nos requisitos). Todos assistem.

Quando começam a chamar a ficha, forma-se uma fila até o médium, que está sentado cercado por outros médiuns e por pessoas simples que fazem parte da corrente, ajudando na energia dos trabalhos. Algumas vezes, você recebe um papel assinado para comprar remédio (passiflora), vendido lá dentro mesmo. Em outras, ele não fala nada ou diz que quer ver a pessoa no trabalho da sessão da tarde ou do dia seguinte.

Após passar pelo João de Deus, as pessoas sentam juntas em outra sala e recebem um passe coletivo. Ninguém encosta em ninguém. Depois de tudo isso, um funcionário da Casa explica como deve se proceder. Quem volta no horário solicitado, passa da mesma maneira, sempre junto de outras pessoas. Ou vai para a cirurgia espiritual, que acontece sem contato algum e com a presença de muita gente. Eu nunca soube que ele atendia pessoas na sala particular dele. Vi algumas vezes João de Deus entrando ou saindo de lá durante os intervalos das sessões, mas sempre acompanhado. Também o vi com alguns famosos.

Na quarta vez em que estive na Casa foi a única vez em que ele falou comigo. Quando passei na fila de retorno o médium disse que eu estava bem e que não precisava mais de tratamento. Que eu poderia voltar conforme a minha vontade e não precisava mais tomar medicamentos de lá. Todos da Casa sempre frisam muito que não se deve jamais parar o tratamento médico convencional. Que o tratamento espiritual é uma coisa à parte.

Por tudo isso, foi muito triste e doloroso ver todos estes relatos tão pesados contra o médium. Infelizmente todas as acusações nos levam a acreditar que realmente alguma coisa de errado estava acontecendo. Ele é um homem como outro qualquer, tem seu livre arbítrio e é realmente difícil acreditar que um homem que fez tantas coisas boas para muitos, que se doou espiritualmente, que uniu num só lugar pessoas de crenças tão diferentes, possa ter feito uma coisa tão monstruosa. Mas, infelizmente, cada vez mais aparecem novos casos.

Espero que tudo isso seja investigado de forma correta e que seja feita a justiça. Que aquele lugar não perca sua essência do bem e que as pessoas recebam paz e não deixem sua fé se abalar. Eu, em particular, fiquei emocionalmente abalada ao ver as reportagens, pois aquele lugar para mim era como um refúgio espiritual, um local para recarregar a bateria. Mas, graças a Deus, minha fé segue firme. Infelizmente temos notícias como essas em vários outros segmentos religiosos, o que é uma verdadeira fatalidade.




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