Cotidiano Titulo
A sogra
Por Rodolfo de Souza
23/02/2017 | 07:00
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 O conceito de sogra, todos sabem, veio sofrendo alguma alteração através dos tempos. A partir de relatos históricos em nada comprometidos com a amabilidade da boa senhora que, a princípio, nascera para criar e amar os filhos, ele é a provável consequência do mau humor daquela que vê repentinamente sua prole roubada por alguém, sem saber como lidar com a questão da perda, consagrada pelos sagrados laços do matrimônio. A fama de má, inclusive, rendeu à sogra notoriedade nas anedotas que nunca pouparam fôlego para denegrir ainda mais a imagem da pessoa que ostenta um título intimamente ligado à tirania, embora nem todas correspondam ao perfil de maldade a ele atribuído.

Minha mãe, por exemplo, não cumpriu direitinho o seu papel de sogra, segundo os preceitos estabelecidos para o parentesco. Era pessoa boa, incapaz de ferir uma mosca.

A mãe de minha esposa, a despeito de sua personalidade mais turrona, quando o tempo fechava, bastava que se lhe compreendesse os motivos e as observações e pronto, logo o céu se abria e o azul se mostrava radiante. E foi assim que fez por merecer o meu amor, cultivado no decorrer de quase quatro décadas de convívio. De fato não dá para ignorar um número destes!

Mas agora ela cismou de cometer uma última desfeita, bem própria de sogra com bastante idade. Ela nos deixou.

Desnecessário narrar aqui a tristeza na qual mergulhou uma casa habituada ao seu convívio diário, durante uma vida inteira. Claro que todos são conscientes do processo natural da vida que deve seguir o seu curso, levando de roldão os mais velhos e poupando os mais novos.

E foi assim que nasceu o dia que este cronista mais temia viver, por conhecer a ligação de sua esposa com a mãe. Ele chegou sorrateiro, como haveria de chegar. E a pessoa que, até então, seguia uma vida normal ao lado dos seus, em dado momento, conversando com o neto, resolveu dar por encerrado o assunto para fechar os olhos, deitar de lado o rosto e deixar muita saudade. Imagem que jamais deixará a lembrança de quem a presenciou em primeira mão.

E aquele derradeiro instante que irrompe na vida das pessoas como um cataclismo capaz de deixar boquiaberto qualquer ser humano, ninguém consegue explicar ou atenuar sua força. E daí cada um passa a carregar a particularidade e a singularidade deste momento sombrio que, para os demais que procuram se acercar da cena para prestar auxílio, não passa de um fato corriqueiro de uma pessoa idosa que se vai. Mas é também um pedaço do coração de alguém que está indo junto. Do coração do que é condenado a permanecer e aguardar o seu tempo.

E a sogrinha conseguiu fazer calar também este escritor que sequer conseguia olhar para esta folha digital e lembrar que acontecimentos como estes também dão origem a crônicas, embora, tudo de repente perdera a importância naquele momento em que assistia à cena de uma senhora em seu leito de morte e o desespero da filha que lhe dedicara toda uma vida de cuidados, pessoa que dividira com ela toda a sua existência e que agora se via diante do inevitável, cara a cara com aquilo que veio para lhe roubar a alegria, os planos, os sonhos... Aquilo que provoca no peito uma dor funda que castiga, mas não mata. Só judia! Que fica ali feito bicho ruim, encurtando o fôlego e voltando o olhar para a pouca importância de tudo o que vai à nossa volta.

De fato temi a chegada deste dia. Mas ele chegou e, como qualquer outro, ficou para trás. Como deve ser.




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