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'Ouvinte da Noite', de Armistead Maupin, é surpreendente
Por Danilo Angrimani
Do Diário do Grande ABC
19/04/2003 | 16:46
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O futebol paulista teve um ponta-direita, chamado apropriadamente de Edu Bala, que corria em direção à linha de fundo com o objetivo de cruzar a bola para a grande área. Nem sempre ele era bem sucedido. Às vezes, Edu Bala corria tanto, e com tanta vontade, que esquecia de fazer o cruzamento e acabava enfiando a cabeça no alambrado. Ele ia em linha reta, a torcida previa o que iria acontecer e ninguém se surpreendia com a colisão.

Algumas histórias também obedecem esse mesmo percurso. A gente sabe como elas começam e como irão terminar. O leitor nunca é surpreendido. O escritor age como o então ponta-direita do Palmeiras.

Patrícia Melo, autora de O Matador, entre outros, segue sempre de maneira inexorável em direção ao alambrado. É legal acompanhar a trajetória de seu personagem até vê-lo se estatelar na cerca, mas é também previsível.

Tudo isso para dizer que o novo romance de Armistead Maupin no Brasil, Ouvinte da Noite (ARX/Siciliano, 358 págs., R$ 44), é deliciosamente surpreendente. O que parece uma trama comum, quase chata, revela-se um enredo de pistas falsas e descobertas inquietantes.

O personagem principal de Ouvinte da Noite é um escritor homossexual, cinqüentão, em crise de auto-estima e em processo doloroso de separação. O namorado não quer mais saber dele, porque deseja experimentar novas formas de relacionamento sexual (leia-se sadomasô).

Sozinho, magoado, o cinqüentão vive uma fase de recolhimento, um momento de lamber as feridas. Ele tem um programa de rádio em São Francisco (EUA), e daí vem o título do livro.

Um dia, o escritor recebe de seu editor um original de 400 páginas. O autor é um garoto de 13 anos, que descreve sua experiência terrível sob a dominação de pais pedófilos que o obrigavam a manter relações sexuais com estranhos e, ainda por cima, filmavam e fotografavam as cenas. O garoto é salvo pelas autoridades, ficando sob a guarda de uma psiquiatra. Depois, o menino descobre que contraiu Aids.

O escritor lê o manuscrito em poucas horas e passa a conversar por telefone com o garotinho. Estabelece-se uma relação amistosa entre eles. O garotinho chama o cinqüentão de “pai” e revela-se um fã dos programas de rádio – é o ouvinte da noite mais fiel.

Mas eles só se falam por telefone. Nunca se viram pessoalmente. Um dia, o escritor recebe a visita do ex-namorado. Este fala com o garoto e com a psiquiatra, que o adotou, levantando dúvidas no cinqüentão: e se eles (o menino e a psiquiatra) fossem uma única pessoa? E se o manuscrito do menino vitimado pelos pedófilos fosse uma fraude?

Nesse ponto, o livro dá uma reviravolta interessante e o leitor passa a acompanhar os passos do escritor em busca de um garotinho que pode nunca ter existido.

Essa é a diferença entre o ponta-direita de recursos precários e o craque. O craque sempre fará um movimento, um drible imprevisível, enquanto o ponta-direita correrá em linha reta até o fim.

O ponta pode fazer a gente se divertir, mas não há dúvida de que é o craque que fará a gente agarrar um livro na tarde chuvosa de domingo e só soltá-lo na madrugada de segunda-feira.




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