Cultura & Lazer Titulo
Vinho do porto
Sílvio Lancellotti
Especial para o Diário
25/11/2006 | 20:08
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Na metamorfose geológica da argila, que se transforma em xisto, reside a qualidade singular do precioso, espetacular vinho do Porto. Faz quase dois milênios que os agricultores da região do Alto Rio Douro, nas imediações de Trás-os-Montes, nordeste de Portugal, cultivam uvas em um solo de xisto, ou de lousa, conforme se diz por lá. Ironicamente, uma terra avarenta, nada generosa, eventualmente submetida a uma coleção de intempéries – a seca, os ventos impiedosos, subitamente a neblina, a geada, os temporais sem aviso. De todo modo, desde os entornos do século III, uma terra em que as uvas redundam em um produto sem par, incomparável, absolutamente inimitável.

São 250 mil hectares de um solo que o homem precisa trabalhar com vigor e paixão. Por causa das suas texturas peculiares, no entanto, um solo que consegue se autoproteger da erosão e que permite uma interessante permeabilidade, ideal para a hidratação e para a alimentação, através de uma seiva muito rica em sais minerais significativos, das raízes das parreiras, dos seus galhos e das suas uvas.

Datam do século III as primeiras provas de que os habitantes da região utilizavam os lagares e os vasilhames necessários à feitura do seu vinho. Um produto que, paulatinamente, se tornou conhecido em Portugal – e que, logo depois das Grandes Navegações, a partir do século XVI, começou a correr o mundo.

Graças às rivalidades políticas entre os britânicos e os holandeses, os seus impérios deixaram de recorrer ao vinho mais comum, então, o francês de Bordeaux e de outras plagas. Optaram pelos ibéricos. E, entre estes, o vinho do Porto logo se destacou.

A consolidação da sua fama ocorreu em 1703, quando os britânicos e os lusitanos assinaram o Tratado de Methuen. Pelo acordo, os britânicos se comprometiam, em troca do vinho, a fornecer seus tecidos aos lusitanos.

No percurso do sucesso universal do Porto, obviamente, houve crises comerciais, fraudes, adulterações. O mercado se fechou até que, em setembro de 1756, o governo do marquês de Pombal eliminou as confusões com a instituição da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e com uma inédita demarcação da região de origem controlada.

Ainda hoje resistem inúmeros dos 335 marcos de pedra que consagraram a demarcação.

Apenas em tal área, com agricultores devidamente cadastrados, se poderia perpetrar o vinho que se exportaria à Grã-Bretanha. Nas décadas seguintes, a região ainda sofreria os ataques infaustos de fungos e de bactérias – o que obrigaria o governo a ampliar a zona de demarcação para vários setores então livres dos perigos. Mais, os agricultores aprenderiam, racionalmente, a se defender das pragas.

Hoje, cabe ao IVDP (Instituto do Vinho do Douro e Porto), subordinado ao governo, regular todas as atividades que envolvem o produto maravilhoso. Principalmente em relação à sua garantia de qualidade. Uma seríssima Câmara de Provadores, por exemplo, julga se o produto obedece, rigorosamente, aos ditames estabelecidos para a garantia de qualidade. São frequentes, ainda, as auditorias de fiscalização nos vinhedos e nos armazéns de envelhecimento.

Como? Envelhecimento? Eis um dos segredos do vinho do Porto. Na construção do mágico produto se sucedem, basicamente, quatro etapas. Com as uvas desengastadas dos seus cachos se procede ao seu esmagamento nos lagares, tanques de pedra de 60cm de altura – um esmagamento cometido por homens, de pés descalços, ou por robôs mecânicos. O resultado fica em repouso durante algumas horas e sofre um novo pisoteamento. Entra, então, na fase de fermentação e de maceração. No caso do Porto, ao contrário de qualquer outro tipo de vinho, esse estágio dura, no máximo, três dias. Daí, por escorrimento, em uma espécie de peneira, se separa o mosto, praticamente líquido, dos sólidos remanescentes – e, ao mosto, em cubas com agitadores, se adiciona a bagaceira, ou grapa, a aguardente destilada de uvas. A aguardente interrompe a fermentação. Quanto ao volume de bagaceira que se adiciona, depende do teor alcoólico e da licorosidade que se deseja impor ao vinho.

O envelhecimento pode ocorrer em cascos de vidro ou em tonéis de madeira, geralmente a do carvalho ou da castanheira. Para o vidro se reserva o vinho que se pretende mais escuro, como o tipo Ruby. Para a madeira, aquele que se pretende mais claro, como o tipo Tawny. O processo leva de dois até 20 anos. Evidentemente, os de 20 anos são os mais nobres – e caros.

Aos excepcionais se batizam como Vintage. A última grande safra, de acordo com o IVDP, ocorreu em 1994, com dois produtos da Taylor e da Fonseca, que receberam a nota máxima, 100, concedida por James Suckling, da prestigiosa revista Wine Spectator. Escreveu ele: “Monumental! Nos taninos e na frutosidade. Experimentar produtos equilibrados como esses dois é algo que muito raramente se repete na vida, mesmo de um especialista”.

Receitas

CAMEMBERT CIRCUS 2

Ingredientes, para uma pessoa: 1 forma de queijo do tipo Camembert; 1/2 xícara, de chá, de vinho tinto, jovem; 2 colheres, de mesa, de vinho do Porto, obrigatoriamente Ruby; 1 colher, de chá, de bagaceira, ou aguardente de uvas; 1 dente de cravo; 1 haste, bem pequenininha, de canela.

Modo de fazer: Com uma faca bem afiada, cuidadosamente, corto fora a tampa do queijo, sem desperdiçar, porém, a sua cremosidade interior. Tampo com papel filme e guardo na geladeira. Numa caçarolinha, combino o vinho tinto, o Ruby, a bagaceira, o cravo e a canela. Levo à fervura. Rebaixo o fogo. Reduzo o líquido até a metade do seu volume original. Apago a chama. Retiro o queijo do frio. Com a mesma faca, faço, alguns talhos, bem superficiais, no seu topo, diagonais no desenho de um diamante. Coloco num prato refratário e levo ao forno, pré-aquecido, para o Camembert se amolengar. Elimino o cravo e a canela. Banho o queijo, elegantemente, com o líquido resultante.

FILET DON GIGIO

Ingredientes, para uma pessoa: 1 colher, de sopa, cheia, de alcaparras bem lavadas do líquido da sua conservação; 1 colher, de sopa, cheia, de uvas passas, das douradas, sem caroços; 1/2 xícara, de chá, de vinho tinto, jovem; 2 colheres, de mesa, de vinho do Porto, obrigatoriamente Ruby; 1 colher, de chá, de bagaceira, ou aguardente de uvas; 1 colher, de café, de açúcar; 1 pelota de manteiga; 1 mignon alto (300g); sal; pimenta-do-reino.

Modo de fazer: Num pilão, esmago metade das alcaparras, até obter uma pasta bem homogênea. Combino às alcaparras restantes e às uvas passas. Numa caçarolinha, misturo o vinho tinto, o vinho do Porto, a bagaceira e o açúcar. Levo à fervura. Rebaixo o fogo. Agrego as alcaparras e as uvas passas. Mantenho, meigamente, enquando grelho o mignon, já massageado com o sal e com a pimenta-do-reino, dois minutos de cada lado. Aveludo o molho com uma pelotinha de manteiga. Coloco o mignon no molho e mantenho, mais um minuto. Sirvo o filé com parte do molho por cima, mais arroz branco, salteado no restante do molho, e com batatinhas fritas, palitos à francesa.

Rubi ou alourado

Estão registradas nos rótulos de vinho do Porto mais corriqueiros nos supermercados do Brasil, ou a palavra Ruby ou a palavra Tawny. Ruby quer dizer, exatamente, rubi. Tawny significa fulvo, alourado.

Não bastam as cores, porém, para diferenciá-los. O Ruby, com taninos mais vivazes, resulta de partidas mais jovens e, por isso, é mais encorpado, mais adstringente, com um bouquet, ou um conjunto de aromas, que lembra as frutas silvestres.

Conseqüência do seu estágio mínimo de sete anos em tonéis de madeira, o Tawny ostenta uma tonalidade que pode ir do palha ao bem dourado, com elegantes reflexos de ocre e, às vezes, de laranja. De sabor mais macio do que o Ruby, o seu bouquet sugere frutas secas, com um fundinho de queimado. No uso culinário, de todo modo, o Ruby se sobressai pela sua rara pujança.



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