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Após 10 anos, sangue de homem gay é aceito nos hemocentros da região

Diário encampou luta pelo direito dos homossexuais, que eram rejeitados nos hospitais; STF derrubou impedimento no ano passado

Aline Melo
Do Diário do Grande ABC
13/05/2021 | 00:13
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André Henriques/ DGABC


Há exatamente dez anos, o Diário publicava reportagem sobre o preconceito contra doações de sangue de homens homossexuais ou que se relacionavam sexualmente com outros homens. Passada uma década e depois de um ano da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), que garantiu o direito a essa população, o jornal acompanhou a vitória da tolerância: a doação de sangue realizada por um jovem morador da região, bissexual, que teve seu último relacionamento com um homem.

No Hemocentro Regional de São Bernardo, administrado pela Colsan (Associação Beneficente de Coleta de Sangue), o produtor de audiovisual William Guimarães, 35 anos, voltou a doar após vários anos. Depois de ter acesso à reportagens sobre a baixa presença de doadores nos bancos de sangue (leia mais abaixo), ele resolveu, de forma voluntária, colaborar. “Tenho um canal em uma plataforma de streaming (para compartilhamento de conteúdo, normalmente vídeos, sem necessidade de download), a Twich, e pretendo abordar esse assunto para incentivar outras pessoas a fazerem o mesmo que eu”, pontuou.

Guimarães relatou que a entrevista antes da doação foi bastante tranquila e que foi ele quem mencionou sobre sua orientação sexual, além de destacar que seu último relacionamento, há pouco menos de um ano, foi com um homem. “Acho que é a quebra de um tabu. Deixar de separar as pessoas por gênero ou orientação sexual é um avanço”, celebrou.

A enfermeira do hemocentro Flavia Celoto explicou que todos os hemocentros da rede já estão adequados à decisão do STF, que em maio do ano passado declarou inconstitucional a regra que previa abstinência sexual de 12 meses para “homens que se relacionam com homens poderem doar sangue”, conforme portarias do Ministério da Saúde e da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). “Desde que não apresente um comportamento de risco e, em caso de ter um parceiro, que seja o mesmo há pelo menos um ano, da mesma forma que é exigido para pessoas heterossexuais, ele pode doar normalmente”, explicou Flavia.
Para o presidente de honra da ONG ABCDS (Ação Brotar Cidadania pela Diversidade Sexual), Marcelo Gil, quando o hemocentro segue a decisão do Supremo ele demonstra respeito e igualdade no tratamento das pessoas. “O sangue de heterossexuais e o da população LGBTQIA+(Lésbica, Gay, Bissexual, Travesti, Transexual, Transgênero, Queer, Intersexo, Assexual, entre outras identidades de gênero e orientações sexuais) é igual. O exame tem que ser feito para analisar e avaliar a doação de todos, de maneira técnica. E isso já deveria ter ocorrido há muitos anos.”

Gil avalia que o preconceito vai diminuir na proporção em que a população LGBTQIA+ for sendo humanizada. “Que isso seja estendido à população transexual, que todas as pessoas possam doar sangue. Precisamos de conferências de saúde, de conselhos municipais LGBTQIA+, para que as políticas públicas de saúde cheguem a toda população”, concluiu.

Bacharel em direito e ativista dos direitos humanos e LGBTQIA+, Léo Paulino destacou que qualquer pessoa que tiver o seu direito de doar sangue negado pela orientação sexual, desde que se enquadre nos outros critérios, pode procurar a Justiça. “Cabe processo por reparação por danos morais. Caso a pessoa não tenha condições de pagar um advogado, pode procurar a Defensoria Pública, no núcleo de diversidade e igualdade racial”, explicou. “Poderá ser aberto um processo administrativo e civil. O importante é que as pessoas não se calem, não se omitam, para que práticas discriminatórias não virem recorrentes”, concluiu.

Estoque dos bancos só dura dez dias

É crítica a situação do estoque dos bancos de sangue administrados pela Colsan (Associação Beneficente de Coleta de Sangue) no Grande ABC. A quantidade, que deveria ser suficiente para 15 dias, é para apenas dez. A supervisora do laboratório do Hemocentro Regional, em São Bernardo, Ingrid de Oliveira, explicou que as doações têm caído com a pandemia. “O sangue que foi doado hoje (ontem) só vai estar disponível para uso em dois dias. Porque são feitos exames, separados os hemoderivados, existe todo um trabalho complexo por trás.”

Cada doação pode beneficiar até três pessoas. “Mas se ocorre algum acidente grande, em que uma pessoa perca muito sangue ou com várias vítimas, isso pode variar”, comentou a profissional.

Doador há vários anos, o advogado Carlos Alberto Fanchione Silva, 56 anos, exibe com orgulho a carteirinha de doador. “Depois que contribuímos dez vezes, a gente já recebe esse cartão”, contou. O advogado havia doado em janeiro e, mesmo durante a pandemia, tem mantido o hábito regular de colaborar. “A gente sabe que os bancos estão com os estoques baixos, então, não deixo de ajudar”, afirmou.

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, os bancos de sangue estão se adequando para garantir a segurança dos doadores, como distanciamento físico, oferta de álcool gel e desinfecção das cadeiras de doação com álcool 70%. Também foi lançado o aplicativo Colsan, que pode ser instalado nos celulares e serve para agendamento das doações.

Para quem já tomou ou está prestes a tomar a vacina contra a Covid, é importante se atentar aos prazos de intervalo entre a imunização e a doação. Quem tomar a Coronavac, pode doar após dois dias. Já quem tomou a Astrazeneca deve aguardar uma semana. Para quem recebeu a vacina contra a gripe (Influenza), o prazo é de 48 horas.

A doação pode ser feita por qualquer pessoa que esteja em boas condições de saúde, com mais de 50 quilos, entre 16 e 69 anos (os menores de 18 anos devem estar acompanhados por adulto responsável, com mais de 21, portar documento que pode ser baixado no www.colsan.org.br, assinado e reconhecido em cartório), portar documento com foto e estar bem alimentado. Homens podem doar a cada dois meses, até no máximo quatro vezes em um ano; mulheres podem doar a cada três meses, até no máximo três vezes em 12 meses.

No Grande ABC é possível doar no Hospital Estadual Mário Covas (Rua Dr. Henrique Calderazzo, 321, em Santo André), das 8h às 15h30, de segunda a sábado (exceto feriado). Em São Bernardo, as doações podem ser feitas no Hemocentro Regional (Rua Pedro Jacobucci, 440), das 8h às 15h30, de segunda a sábado, exceto feriados. Em São Caetano a coleta ocorre no Núcleo Regional de Hemoterapia Dr. Aguinaldo Quaresma (Rua Peri, 361), também de segunda a sábado, exceto feriados, das 8h às 12h.

Boa ação ajuda baiano a voltar para casa

Como se estabelecem as conexões que nos ligam às outras pessoas? Aquelas profundas, com indivíduos que vão fazer parte das nossas vidas? E aquelas momentâneas, efêmeras, mas essenciais para as nossas necessidades daquele exato momento? Esse balé da vida – ou, quem sabe, da providência divina – foi o que vivenciou na manhã de ontem o metalúrgico desempregado José Ricardo Bacelar de Oliveira, 48 anos, que na quinta-feira da semana passada veio de Salvador, na Bahia, para São Paulo, acompanhando um vizinho que prometeu para ele um emprego. O vizinho sumiu com seu celular, roupas e dinheiro; ele veio parar em São Bernardo e no Hemocentro Regional conseguiu a passagem para voltar para casa.

Oliveira contou que conhecia o vizinho há muitos anos, quase a vida toda. Também conhecia sua mãe e irmãs. Depois de um ano de desemprego em Salvador, a oferta de um trabalho em São Paulo, em uma obra, com alojamento, salário e todos os direitos, era irrecusável. Foram dois dias de viagem de ônibus entre a Capital baiana e a paulista. Mais três dias em hotel no Centro de São Paulo. Até que no domingo, o vizinho sumiu. “Levou a minha mala e meu celular. Não tenho o contato de ninguém de cabeça, não tenho perfil em rede social”, lamentou. “Nunca soube que ele usava droga ou fizesse alguma coisa de errado. Não sei por que fez isso.”

Após passar uma noite em albergue, foi aconselhado a ir para São Bernardo. “Me disseram que por ser cidade menor, mas com recursos, podiam me ajudar a conseguir uma passagem de volta”, contou. Passou pelo Centro Pop (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), onde conseguiu encaminhamento para o albergue municipal, no Centro. “A comida é boa, as pessoas nos tratam bem, mas não é um lugar bom”, afirmou. “Muitas pessoas, todas muito juntas, de noite chegaram alguns bêbados, usando droga. Não tem como ficar ali”, completou.

Após a noite no albergue, Oliveira foi conversar com uma assistente social. A servidora disse que realmente poderia conseguir a passagem para ele voltar para Salvador, mas que isso poderia levar alguns dias. Determinado a retornar para casa, o metalúrgico estava procurando um posto de gasolina onde pudesse pedir carona a um caminhoneiro, quando avistou o logo da Colsan. “Sempre doei sangue, especialmente quando servi o Exército. Meu pensamento foi fazer uma boa ação para ver se Deus me ajudava”, relatou.

O metalúrgico encontrou a equipe do Diário, que estava no local fazendo reportagem sobre os estoques do banco de sangue no Grande ABC. Comovidos com sua história, a equipe do jornal, composta também pelo repórter fotográfico André Henriques, além da médica da Colsan, Amanda Bosio Quinzani, compraram pela internet a passagem por R$ 280,79 e ainda deram R$ 100 em dinheiro para que ele voltasse ontem mesmo para Salvador. Com partida programada para 17h de ontem, Oliveira deve chegar em casa amanhã. “Não tenho nem como agradecer. Só digo que as pessoas devem tentar fazer o bem”, celebrou.




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