Economia Titulo
Bastidores da livre concorrência
Roney Domingos
Do Diário do Grande ABC
16/02/2002 | 17:05
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O professor de macroeconomia da FGV Management, de Santo André, Ruy Santacruz, foi um dos seis membros do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) entre 1998 e 2000. Ele acompanhou processos polêmicos como o da criação da Ambev, entre outros 600 casos analisados pela autarquia vinculada ao Ministério da Justiça e criada para zelar pela livre concorrência.

Em um dos casos mais famosos, a americana Procter & Gamble queria entrar no Brasil, mas via uma forte concentração da marca Kolynos, produzida pela Colgate-Palmolive, em São Bernardo. O Cade obrigou o fabricante a subsituir o Kolynos por Sorriso por quatro anos e “colorir” as prateleiras de creme dental com mais opções. Apesar da diversificação, a Procter desistiu de entrar no segmento e a Colgate estuda agora o relançamento da marca.

Santacruz conta nesta entrevista ao Diário porque o Cade não foi transformado na Agência Nacional de Defesa do Consumidor, projeto que agradava ao secretário de Acompanhamento Econômico, Cláudio Considera. “Os burocratas que divergem da moderna intervenção do Estado não conseguiram concentrar poder porque o governo desistiu da idéia”. Santacruz defende uma “reforma minimalista” na lei brasileira para reforçar a posição antitruste. O ex-conselheiro garante que o Cade não sofre pressão dos lobistas, apesar de decidir disputas que envolvem milhões de dólares. “Nunca fui procurado para alterar meu voto.”

DIÁRIO – Em um balanço da atuação do Cade nos últimos anos: quais as principais decisões já tomadas pelo órgão em defesa da concorrência e do consumidor?

SANTACRUZ – Os casos mais emblemáticos foram sem dúvida a aquisição da Kolynos pela Colgate e a fusão da Brahma e Antártica, que resultou na Ambev. Em ambos os casos, o Cade tomou medidas com objetivos de reduzir os efeitos da concentração de mercado. Mas do meu ponto de vista, a atuação mais marcante do Cade vem se dando na área de repressão ao abuso do poder econômico, com a imposição de sanções e a determinação de suspensão de condutas desleais de mercado em diversos casos, como no cartel de mercado dos aços planos, por exemplo. O Cade reprime com sucesso condutas anticompetitivas como vendas casadas, recusa de venda, discriminação da venda, domínio de mercado, prática de preços predatórios, entre outras.

DIÁRIO – De que setores da indústria o Cade recebe maior número de casos para análise de fusões e aquisições? Gostaria que o sr. falasse, em especial, dos setores químico e de autopeças, predominantes no Grande ABC.

SANTACRUZ – No período em que passei no Cade como conselheiro, os setores químico e de autopeças foram os que mais apresentaram casos de fusões e aquisições. O setor de autopeças, especificamente, reduziu o número de apresentações após meados de 1998. Esse significativo número de operações decorreu do mesmo processo de acirramento da competição no segmento de automóveis. As montadoras passaram a exigir empresas maiores com mais exigências de custo e de qualidade. Isso provocou uma desnacionalização do setor, que, entretanto, não afeta a concorrência. O consumidor de automóvel não é prejudicado e é dele que a defesa da concorrência cuida. A desnacionalização, em si, não é objeto da lei do Cade, mas deveria ser acompanhada mais de perto pelo governo.

DIÁRIO – O que poderia ser feito para melhorar a atuação do Cade contra os abusos de poder econômico. Colocado em um ranking, em que posição o Brasil se encontraria em termos de livre concorrência?

SANTACRUZ – Acho que algumas modificações deveriam ser feitas na legislação. Mas o mais importante seria a criação de um quadro estável de funcionários para a carreira de defesa da concorrência, conforme já previsto na legislação mas jamais implementado pelo governo federal. Isso concederia à aplicação da lei de defesa da concorrência no país uma melhor qualidade e produtividade, mais do que qualquer outra mudança legal ou institucional. Em termos da posição do Brasil na aplicação da lei antitruste, pude observar que o Cade é muito respeitado no exterior. Sem dúvida, é uma referência internacional na aplicação deste tipo de lei para todos os países em desenvolvimento.

DIÁRIO – O Cade analisa processos enviados pelas distribuidoras de veículos contra as montadoras. Gostaria que o sr. comentasse em que ambiente estas queixas ocorrem e a estrutura de poder econômico destas empresas.

SANTACRUZ – Há alguns processos em trâmite que analisam condutas comerciais no mercado de revenda de automóveis, mas nenhum deles foi objeto de decisão final. Não participei de nenhum julgamento referente a este setor.

DIÁRIO – O projeto de criação da Agência Nacional de Defesa do Consumidor e da Concorrência prevê a substituição do Cade?

SANTACRUZ – O projeto inicialmente apresentado reduzia a importância da decisão colegiada do Cade na aplicação da lei da defesa de concorrência no Brasil. Por isso foi rejeitado quase por unanimidade por toda a comunidade antitruste. Além disso, tentava juntar duas áreas que não têm nenhuma afinidade. Defesa do consumidor trata de relações de consumo, entre uma pequena loja e um cliente, por exemplo. Já a lei de defesa da concorrência trata da repressão ao poder econômico, o que significa que se refere a grandes empresas e a seus relacionamentos de mercado. O governo se convenceu de que o projeto era ruim e desistiu de apresentá-lo. Resta agora ao Cade assumir o papel de condutor de uma pequena reforma na lei brasileira de defesa da concorrência. Uma reforma minimalista que poderia aperfeiçoá-la.

DIÁRIO – O grupo Unipar – maior acionista do Polo Petroquímico de Capuava – inicia neste ano um projeto de integração com um projeto chamado Rio Polímeros para configuração da Petroquímica do Sudeste. Para alcançar o objetivo de produzir matéria-prima de maior valor agregado para a indústria química e de plásticos, os investidores teriam de alinhar objetivos de produção e agir sincronizadamente, o que poderia provocar a reação de outros grupos. Projeto deste porte passaria pelo Cade?

RUY SANTACRUZ – No âmbito do Cade, o projeto do grupo Unipar passaria tranqüilamente. Existe uma tendência mundial de integração entre a primeira (insumos derivados da nafta) e segunda geração (resinas) da cadeia petroquímica. No mundo todo, vende-se polietileno e polipropileno em grande escala. No Brasil, a Odebrecht controlaria a Copene, no Nordeste, e manteria a parceria com a Ipiranga na Copesul. Os grupos Suzano e Unipar ficariam com a Petroquímica do Sudeste, enquanto a Dow se concentra em Baia Blanca, na Argentina.




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