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Joul, do Máteria Rima: ‘Precisamos falar das coisas boas, propagar o bem’
Por Marcela Munhoz
Do Diário do Grande ABC
01/04/2019 | 07:00
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Nario Barbosa/DGABC


Anos após superar experiência de uma dificuldade pessoal na época de escola, Jodson do Nascimento Silva, 40 anos, comemora o sucesso do seu projeto, o Matéria Rima. O grupo premiado de Diadema – campeão do Itaú-Unicef – começou em 2012 e explora a cultura hip hop como estratégia de aprendizagem. “Esse grupo é a minha vida. Ele significa o ar que eu respiro, minha audição, minha visão, minha fala. É o poder da transformação”, conta. Hoje o projeto atende mais de 100 crianças na sede, outros 1.479 alunos de escolas municipais, além de pessoas que participam de oficinas.

O que verdadeiramente o motivou a criar o Matéria Rima? Foi experiência pessoal?
Sim, foi uma experiência pessoal. Eu tinha muita dificuldade na escola, não conseguia me adaptar porque não era tão acolhedora. Era uma criança pobre – sou nascido em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco –, e vim para Diadema no começo dos anos 1980. Quando chegava na escola, a molecada tirava uma onda, me chamava de ‘neguinho do cabelo ruim’, ‘pé de barro’. Não achava a escola um ambiente gostoso de ficar. Fui crescendo e ficando cada vez mais decepcionado com o jeito de a instituição ensinar, com muitas regras e acabei fazendo a evasão escolar, o que deixou minha mãe muito triste. Percebia que ela ficava com medo de a gente entrar para o mundo do crime e das drogas. Passei a ter contato com o rap – na época nem sabia que fazia parte da cultura hip hop – e comecei a ter afinidade muito grande porque a música me remetia à infância, com Luiz Gonzaga e Alceu Valença, que são um ‘canto meio falado’. Então, fiz uma rima para decorar a história que tinha que estudar para a prova. Com isso, peguei alguns livros para ler e compus uma música. Nessa prova, tirei minha primeira nota 10. A professora ficou assustada e achou que tinha colado. Disse que não, que tinha feito um rap e ela pediu para eu mostrar para um colega dela, depois para a diretora. Aquilo foi me dando autoestima e vi que era um caminho que podia seguir, compondo músicas com as matérias curriculares. Por isso, o nome Matéria Rima, que é a rima com as matérias da escola. Não parei mais de fazer isso e senti uma necessidade enorme de mostrar essa técnica para outras pessoas. Foi quando surgiu o grupo de mesmo nome.

O que significa esse grupo na sua vida e também para quem participa?
Esse grupo é a minha vida. Ele significa o ar que eu respiro, minha audição, minha visão, minha fala. É o poder da transformação. A partir daí que eu começo a andar com a cabeça erguida, a acreditar que é possível, que os meus sonhos podem ser realizados, que basta a gente se dedicar, querer e ir atrás, porque tudo é possível. Na vida de outras pessoas, acho que é importante a gente ter uma visão do que já foi conquistado, de quem já foi beneficiado. Como exemplo, temos o Sasquat, que foi um dos primeiros alunos do Matéria Rima. Hoje é publicitário, pai de família e ele era um menino que veio de liberdade assistida. Tinha aprontado na cidade onde morava. Ouviu nossas orientações e se transformou nesse grande homem. E tem tantos outros. Tem também o Bocão, de um grupo paralelo, que é o Distorção Sonora, e hoje vive no Canadá. Tem o Huguinho, que é dançarino e tem o grupo Soul PM, que é um braço do Matéria Rima na Finlândia. O Matéria Rima já é ponto em outros países e referência para educação. Isso tem um significado muito grande porque o início de tudo foi para uma melhoria pessoal. Mas acabamos transformando vidas e hoje essas vidas estão transformando outras vidas. É um sucesso.

Qual a importância para a comunidade carente?
É mostrar para a molecada que é possível acreditar nos sonhos. Somos atores da vida real. Quando chegamos nas comunidades e dizemos que é possível conquistar algo ou sair da situação precária com livros, músicas, educação e escola, eles começam a ter uma outra visão. Porque, na periferia, as referências são ‘vou ser um jogador de futebol’ para melhorar a vida da minha família. Eles têm pouca referência com educação para mudar a vida deles. Quando a gente leva a educação em primeiro plano para dizer que a partir dali é possível transformar a vida, a gente dá sentido para as coisas. E não só um atleta ou músico para mudar minha realidade. O importante é saber a base que você quer ter para mudar sua realidade. Se crescer só com o pensamento de que o esporte ou a música pode transformar, talvez você não chegue ou alcance e se frustre e não tenha uma concepção legal do que quer fazer na vida.

Considera o projeto uma ferramenta de apoio ao aprendizado? Ou é mais do que isso?
É um apoio ao aprendizado, porém, também é mais do que isso, porque a gente tem certeza de que a cultura, aliada à educação, transforma a vida. Quando a pessoa entende o que a gente está fazendo, como é o caso de Diadema, onde estamos em 21 escolas (20 municipais e uma particular); quando temos um bom diálogo com o poder público, que é a Secretaria de Educação; quando a escola abre as portas e professores, diretor e famílias entendem o que a gente está fazendo; tudo isso faz com que a comunidade tenha um pouco de melhoria, porque os atores da sociedade se uniram para falar de educação. Há algum tempo essa missão foi dada para a escola, mas, na verdade, quem educa é a sociedade. Estamos fazendo a nossa parte, acreditamos que o impacto demora um pouco, mas a gente tem certeza de que isso vai trazer benefícios. Quando esse benefício é entendido por todos, temos um avanço muito rápido.

Por que acha que o Matéria Rima deu tão certo?
Deu certo porque a gente encontrou parceiros que acreditam no que fazemos. Parceiros que sabem o que a gente faz são importantes para a comunidade, para as escolas e para as famílias. Importantes para toda uma sociedade.

Como seu projeto é visto fora do Brasil?
A gente tem um carinho muito grande em alguns países, como Alemanha, França e Senegal. Quando você começa algo, você acredita, se não nem faria. Pensamos nisso sempre quando recebemos alguns elogios.

Quais são os poderes da rima e também da dança dentro das escolas?
A dança dá alegria, auto-confiança, faz você movimentar o corpo, libera endorfina, que é a sensação de prazer, o cérebro se enche de oxigênio, dá vontade de fazer as coisas. Esse estado de espírito abre a mente, facilita a relação entre os professores e alunos, tem potencial para mudar todo o ambiente escolar, que poderia ser mais chato ou talvez até um pouco opressor. A criançada dá as dicas e nós fazemos o nosso trabalho para que elas aprendam brincando.

Do que escolas brasileiras precisam para executar bons trabalhos com os alunos?
Primeiro a escola precisa entender que o mundo mudou e está mudando. E que ela precisa se unir com tudo que está à sua volta, no território em que ela está inserida. Por sua vez, os professores que chegam nessas instituições de ensino, precisam entender que cada território tem uma peculiaridade, uma cultura, um jeito. A partir dessa sensibilidade, famílias, escolas e comunidade, que juntas têm mais força, precisam levar ao poder público as diferentes demandas para a melhoria da educação. O poder público precisa entender que são necessários vários elementos para melhorar a educação, não apenas o hip hop. É um movimento que tem que ser feito, e ele envolve a escola e a comunidade. É preciso haver essa pressão, nem sempre a culpa é da escola.

Como vê essas últimas tragédias, como o massacre em Suzano, dentro das salas de aula?
É lamentável. Condenamos todo o tipo de violência, desde um ‘simples’ bullyng, até o aluno que xinga o professor. Isso já são tragédias, que mostram como o ambiente escolar está hostil. O que fazemos é justamente levar alegria e deixar o ambiente escolar mais acolhedor e agradável. O grafite, a música, a brincadeira e os jogos têm exatamente a função de romper a barreira do mal e espantar o negativismo. Não temos a solução, mas sabemos que o que fazemos é um caminho para diminuir a violência.

Como o Matéria Rima lida com assuntos como armas, sexo, violência? O que é ministrado nos cursos oferecidos pelo grupo?
Somos uma extensão da casa, usamos a cultura hip hop como um gancho para falar de assuntos que, às vezes, a escola e a família não conseguem abordar. De leve vamos conversando sobre carinho, amor, solidariedade, sempre dando tempo ao tempo. Como trabalhamos com crianças pequenas, alguns assuntos deixamos mais para frente. Outros não, sabemos que já dá para abordar. Não queremos formar necessariamente ótimos dançarinos, DJS, grafiteiros e MCs, e sim ótimas pessoas.

Como e quando o Matéria Rima migrou de projeto dentro das escolas para grupo que faz shows ao redor do mundo?
Na verdade foi o contrário. Tudo surgiu a partir de um problema pessoal com a escola. Esse problema inspirou a criação de músicas, que viraram CDs e também foram a base para apresentações artísticas em palcos do Brasil e mundo afora. Só então esse trabalho artístico foi para as escolas. Hoje somos uma instituição sem fins lucrativos, atendemos em nossa sede mais de 100 crianças, e atendemos nas escolas municipais 1.479 crianças. Então foi o contrário. Surgimos como um grupo artístico, e hoje somos uma instituição que também está nas escolas.

Depois que os alunos se formam, crescem, podem ainda fazer parte do projeto?
Sim, podem. Temos hoje muitos jovens atuando conosco que eram crianças atendidas pelo projeto. Hoje são adolescentes e continuam fazendo as oficinas em nossa sede. E além do interesse por música, dança e grafite, muitos fazem outros cursos que oferecemos, como inglês e administração.

O grupo Matéria Rima já mudou vidas?
Acredito que muitas. Nós nem temos como saber de todos os casos. Os educadores do Matéria Rima são, na verdade, todas pessoas transformadas pelo projeto. Hoje somos 30 pessoas, incluindo administração, fotografia, músicos, dançarinos, que foram transformados pelo projeto. Também temos vários depoimentos de familiares, de professores, segundo os quais muitas crianças foram transformadas pelas atividades que propomos.

Que mensagens o grupo quer transmitir?
Amor, solidariedade, alegria, paz. Precisamos falar das coisas boas que acontecem pelo mundo, propagar o bem. Queremos formar bons cidadãos, capazes de olhar para o outro como seu semelhante. Queremos que nossos alunos entendam que a diversidade é linda, que ninguém é igual a ninguém, que precisamos uns dos outros para viver, não somos independentes.

RAIO X
Nome: Jodson do Nascimento Silva
Estado civil: Casado
Idade: 40 anos
Local de nascimento: Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco; mora em Diadema
Hobby: Ouvir música
Local predileto: A base do Matéria Rima, em Diadema
Livro que recomenda: Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire
Artista que marcou sua vida: Luiz Gonzaga
Profissão: Músico e empreendedor social




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