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Boa literatura dispensa alarde
Nelson Albuquerque
Do Diário do Grande ABC
15/03/2005 | 12:03
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A boa literatura nasce silenciosa, muitas vezes longe das grandes editoras, e caminha com as próprias pernas. Essa história costuma se repetir com freqüência e a andreense Simone Maia é uma protagonista. A escritora de 32 anos acaba de publicar seu primeiro livro, A Última Estação (edição independente, 116 págs.). Para o lançamento, nada de festa, nada de estardalhaço. “Só quero ser lida”, diz.

Não que Simone não queira fazer um lançamento, com sessão de autógrafos e tudo o que o autor tem direito. “Não é questão de pessimismo, mas é difícil para um escritor desconhecido atrair público”, afirma. Os 200 exemplares que ela mesma bancou são vendidos por e-mail e telefone (simone_maia72@yahoo.com.br e tel.: 4453-5578) por R$ 20, com despesas de postagem já inclusas.

A autora escreve desde a adolescência, mas só agora acredita ter o texto “em um certo nível” para ser publicado. Começou com poesia, gênero com o qual não se identificou, e logo passou ao conto. Participou de oficinas literárias e grupos do circuito underground, em Santo André e São Bernardo. É formada em Educação Artística, com especialização em Música, pela Fatea.

Seu contato com a arte vai além. Simone também desenha e faz fotografias artísticas. A foto da capa do livro é de sua autoria, sob concepção gráfica do designer Fábio A., de São Caetano.

Em 1993, com O Bilhete, participou e venceu um concurso de contos da Casa da Palavra, de Santo André. É seu primeiro texto publicado e é também o conto que abre o livro. Nele, de cara, a autora deixa transparecer sua confessa influência, Clarice Lispector. “A torrada mal acabara de agredir a garganta com sua textura eriçada e Naira já tinha tempo para pensar a respeito: ‘Torradas são cadáveres... não passam de pães mortos’”, são as primeiras palavras do livro. Simone fala que sua lista de autores preferidos é interminável e inclui José Saramago, Samuel Beckett e Jorge Luis Borges.

Existencialista – O dia-a-dia de Simone Maia é o de uma funcionária do setor de telecomunicação. Não que isso seja empecilho. “O que mais me inspira é a observação do cotidiano, o comportamento das pessoas. Mas tento sempre buscar o lado interno do ser humano e como isso se reflete na sociedade. O que me interessa é a questão existencialista”, afirma a escritora.

Os contos revelam o olhar da autora, uma visão que atravessa a matéria e sai da realidade para enxergar o que não se vê com olhos comuns. Em Larissa, percebe a repressão sobre uma criança que repete o que a avó lhe pede, como se fosse “uma bonequinha de ventríloquo”. No conto Play-Pause-Stop-Eject (ou Open/Close) Simone capta o momento atual, em que as “banalidades emotivas” tentam resistir à “era sexista-virtual-nonsense”.

Os tais assuntos do cotidiano viram texto de forma nunca negligente. “Raramente o texto sai de primeira. Costumo reler milhões de vezes e refaço, é um trabalho artesanal”, diz. Um dos contos mais trabalhados, segundo a própria autora, é Atrás da Porta de Ferro, que revela a visão de um interno de manicômio. “Algumas pessoas acham que escrevi essa história inspirada no filme Bicho de Sete Cabeças (2000), mas na verdade o criei quando trabalhei em um hospital psiquiátrico, em 1992”, conta.

O melhor deste livro talvez seja a perspectiva de estar nascendo uma escritora de talento. Os textos são bons, mas ainda carecem de maturidade, característica provisória reconhecida pela própria Simone: “Não sou uma escritora pronta”.

Simone embarcou em um trem – meio de transporte aparece mais de uma vez em suas histórias – sem saber onde vai parar. “Se não me frustrar com esse meu livro eu continuo”, diz. Mas, ao que parece, ela vai até a última estação: “Acima de tudo escrevo para mim. É um vício, tenho necessidade de escrever”.



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