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Dogma 95 faz 10 anos com 61 filmes
Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
03/12/2005 | 08:41
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“Eu não sou mais um artista”. Foi com um tal ímpeto suicida que os cineastas dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg assinaram o Voto de Castidade (mais informações nesta página), carta magna do Dogma 95 datada de 13 de março de 1995. Dez anos atrás, quando o cinema completava 100 anos de idade dedicados tanto à arte quanto à baboseira, a dupla de diretores fundava um manifesto que induzia o audiovisual a assumir-se como uma extensão da representação teatral, em que a “verdade deveria ser arrancada de personagens e de ambientes”, única e exclusivamente. Radicalismo, esvaziamento técnico ou um modismo operado por cineastas durante as férias? Pergunta que já foi respondida centenas de vezes, e dificilmente de forma unânime.

Muito foi dito sobre um manifesto que começou justamente com os filmes de seus fundadores: Festa de Família (1998), de Vinterberg, e Os Idiotas (1998), de von Trier, obras respectivamente subtituladas como Dogma nº 1 e Dogma nº 2. A propósito, a mania de enumerar os longas-metragens dogmáticos pegou, e assim foram computados 61 filmes, legitimados pessoalmente pelos co-fundadores até junho de 2002, quando os idealizadores do movimento decidiram parar de receber inscrições de postulantes e emitir os certificados que reconheciam a obediência a suas normas. Saíram de cena, afirmando que o Dogma 95 havia se tornado um gênero cinematográfico – aspecto que os constituintes do manifesto rejeitavam por escrito – e que qualquer um era capaz de fazer um “filme-dogma”, sem precisar de diploma para tal.

Verdade seja dita: realiza-se “filmes-dogma” desde que o mundo é mundo, uma vez que o dinheiro de produtoras e patrocinadores pode até nascer em árvores, mas é preciso um crachá de VIP para participar da colheita. Filme de baixo orçamento é um bom nome genérico para o específico “filme-dogma”, salvo as exigências do movimento dinamarquês que dizem respeito a dramaturgia (abolir “ações superficiais”, evitar deslocamentos históricos e geográficos).

Não coincidentemente, numa triagem por nacionalidade dos 61 “filmes-dogma”, os Estados Unidos aparecem como campeão de diplomações, com 20 longas-metragens autenticados – a acessibilidade à tecnologia digital e a cultura de numerosa produção cinematográfica anual, que lateralmente facilita produções à margem, são causas a considerar. Em segundo lugar no ranking vem a Dinamarca natal, com 12 produções. Completam a tabela Itália (cinco filmes), Inglaterra (quatro), Espanha (três) e Austrália e Luxemburgo (dois, cada um), mais os países com um representante nacional solitário: Argentina, Chile, México, França, Alemanha, Coréia do Sul, Suécia, Suíça, Noruega, Bélgica, Canadá, África do Sul e Turquia. Os mais conhecidos, entretanto, são os filmes dinamarqueses, como Festa de Família, Os Idiotas, Mifune (1999), O Rei Está Vivo (2000) e Italiano para Principiantes (2000), estes disponíveis em VHS e/ou DVD.


Testamento – O que sobrou do Dogma 95, para além das ironias à brasileira, como o Dogma Feijoada de Jefferson De (exclusivo a personagens negros e alheio a estereótipos étnicos) ou o Trauma (Tentativa de Realizar Algo Urgente e Minimamente Audacioso), sob a sombra do qual Alexandre Stockler lançou Cama de Gato? Não vale desancar por desancar – seria considerá-lo apenas como um contra-ataque ao ultra-design do cinema de multidões (leia-se Hollywood) ou ao maneirismo dos tais “filmes de arte”. O Dogma 95 também é isso, mas não só.

Uma busca coletiva pelo cinema elementar desperta a (des)necessidade de penduricalhos (efeitos especiais, deus ex-machina, manias autorais e assim por diante) que a arte hoje adota para se expressar e que, por conseqüência, sacrificam rudimentos como dramaturgia e composição estética, com fotografia e enquadramentos que não significam nada além da ilustração.

Sem balaio de gatos, por favor; porque mesmo no cinema hollywoodiano existem sujeitos que encaram sua arte com burilação ética e estética extrema, a mencionar de memória e de forma breve Clint Eastwood, M. Night Shyamalan, Martin Scorsese, John Woo e os irmãos Peter e Bobby Farrelly. Do mesmo modo que se pode extrair filmes bons de um rosário de regras niilistas (Festa de Família e Os Idiotas, principalmente), pode-se obtê-los dentro das regras de mercado, tão ou mais restritivas quanto o Dogma 95 (Menina de Ouro, A Vila, Gangues de Nova York). Agora, transformar a limitação, antes uma atitude crítica, em um traço gratuito de personalidade autoral são outros quinhentos, como evidenciam os problemáticos Manderlay e Querida Wendy, os mais recentes filmes de von Trier e Vinterberg, ambos em cartaz em São Paulo. Aqui, os diretores repetem: “Eu não sou mais um artista”; e completam, de forma arrogante: “Não qualquer um, como todos os outros”.



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