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Eu, bicho que sou
Rodolfo de Souza
04/10/2020 | 07:00
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 Eu precisava correr, mas me faltava o ar, precioso ar, elemento essencial, sobretudo, quando se necessita da força do corpo para fugir, deixando para trás o monstro engolidor de florestas e de bichos. A fumaça era intensa, a ponto de cegar-me os olhos um tanto ardentes. Até a lágrima secara, por causa do medo e do fogo cercando por todos os lados, como se quisesse esmagar a vida que ali buscava se salvar. Vida atormentada que não acreditava no indulto que, vez ou outra, as labaredas pareciam dispostas a lhe conceder. Tampouco em alguma chance de fuga, pequenina que fosse. O fogo não gosta da vida, porque não sabe que faz parte dela. Assim eu pensava, porque sabia que, naquele momento, ele brotara da mão daninha que tramara contra tudo o que vive, em prol de algo inexplicável, inconcebível.

E eu corria e desviava do calor que parecia brotar do mato, do solo, do céu, de qualquer lugar, de todos os lugares. Meu pensamento era fragmentado, não porque eu fosse animal, mas porque não havia tempo para pensar. Meus pés topavam com paus e pedras o tempo todo, minhas pernas doíam demais. Havia escoriações pelo meu corpo que eu, até ali, imaginara duro, resistente a qualquer espinho de erva daninha. Havia queimaduras também. Mas era impossível precisar a origem de tanta dor. Nem havia tempo para isso. Era preciso correr.

Muitos me acompanhavam. Atropelávamos uns aos outros. Uns tantos ficavam pelo caminho, sem que pudéssemos lhes estender as mãos. Não havia tempo. Era preciso correr, correr para sobreviver em meio aos gritos desesperados. Eram vozes das mais variadas espécies, que se misturavam compartilhando o mesmo lamento e o mesmo anseio de luta pela sobrevivência. E eu me sentia privilegiado e culpado por ter pernas longas, em contrapartida aos coitados mais lentos, aos que rastejavam, aos que carregavam filhotes. Difícil, aliás, testemunhar o desespero de uma mãe símia, abraçada ao seu pequenino. Não pude, inclusive, me furtar de ver naquela cena a imagem de uma mulher agarrada ao seu filho, fugindo da morte como nós fugíamos. Lembrei-me da mulher, porque são bichos parecidos, os humanos e os macacos, uma vez que têm mãos que afagam e que agarram para salvar. Têm braços para acalentar e oferecer segurança... A diferença é que a brilhante mente humana não se importa com a vida.

Impressionava também o lamento da vegetação, estalando, virando fagulhas, fuligem e se transformando em grosso nevoeiro. E o mais duro era imaginar que nossa destruição e a destruição do nosso meio vinham por intermédio da máquina de gerar dor que o ser humano, de mente evoluída, tratou de inventar como forma de enriquecer uma pequena fatia de sua sociedade, gente rica o suficiente, mas sempre com os gordos olhos voltados para qualquer oportunidade de enriquecer ainda mais. Éramos, pois, assassinados pelo poder que o bicho homem exerce sobre os demais bichos e imagina exercer sobre o planeta. Não sabe ou, antes, procura não pensar que seu fim também é iminente, que nem todo o ouro acumulado servirá para salvá-lo quando não houver mais comida, água e o precioso oxigênio.

Entretanto, o que esperar de um animal que sequer olha para o seu semelhante que percorre as ruas de suas cidades em busca do que comer; que se desdobra para ganhar o pão que deverá suprir de energia o corpo debilitado para, quem sabe, vencer mais um dia nessa luta inglória? Mas nós, bichos que somos, uma vez sobreviventes, trataremos de nos alimentar com a erva que sobrou. Nossa vestimenta é o nosso coro, nossas penas... Não necessitamos de tecnologia, moda, luxo e ostentação para vivermos em paz. Basta-nos somente ar fresco, água boa e alimento em abundância. Claro que também clamamos pela nossa liberdade, que só teremos de volta quando os dedos sujos do tinhoso começarem a apodrecer e ficarem impedidos de tocar no que é puro e natural.




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