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Meninos em risco estão em 121 locais, diz estudo da região
André Vieira
Vanessa Fajardo
17/01/2010 | 07:03
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Nario Barbosa/DGABC


Sexta-feira e sábado são os dias em que há maior concentração de crianças e adolescentes de rua circulando no Grande ABC. Eles estão em 121 locais públicos, identificados por toda a região, pelo relatório final do Projeto Grande ABC Integrado.

O documento foi obtido com exclusividade pelo Diário. Em um único sábado, os pesquisadores contabilizaram um total de 112 crianças e adolescentes perambulando pelas ruas das sete cidades. Em resposta aos questionários do estudo, os jovens abordados (neste e em outros dias) afirmaram que a sexta-feira é o dia preferido para circularem pelas ruas.

A maioria é do sexo masculino (em média 75%) e tem entre 12 e 18 anos. O estudo traçou um diagnóstico de meninos em situação de risco na região. Eles circulam principalmente no entorno de corredores de comércio ou nas proximidades de bares e restaurantes.

O documento foi entregue aos sete CMDCAs (Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente), que compõem um comitê executivo no Grande ABC. A comissão, por sua vez, se reúne na quarta-feira para discutir o material e emitir seus pareceres. Nenhum representante quis comentar os resultados antes da reunião.

O estudo foi iniciado há quase dois anos pela Universidade Metodista e a Fundação Projeto Travessia, com patrocínio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, do governo federal, e a Fundação Telefônica.

A coordenadora do trabalho e professora da Metodista Dagmar Pinto de Castro e o representante do Projeto Travessia, Marcelo Caran, também não quiseram comentar os dados. Ambos informaram que o documento é de responsabilidade do comitê.

O relatório mostrou ainda que é predominante a concentração nas ruas de crianças pardas e negras (em média 72,5%). No sábado à tarde, há registro de maior incidência dessas etnias, de até 85,6%. Porém, a incidência de crianças e adolescentes brancos na sexta-feira é de 44,4% .

Ao todo, 86,25% dos entrevistados possuem família com residência fixa e voltam para casa todos os dias. Por este motivo, são caracterizados como crianças ou adolescentes na rua. Os menores de rua moram nas vias públicas e apareceram em menor quantidade.

O trabalho visa direcionar as políticas públicas na área da Infância e Juventude do Grande ABC.


Maioria leva a vida vendendo doces nos faróis

Das crianças e adolescentes encontrados tentando ganhar a vida pelas vias da região, a maioria (68%) vendia balas. No sábado à tarde, segundo o estudo, foram contabilizados 25 menores nesta atividade. Em seguida, 13 apareceram pedindo dinheiro. E outros cinco lavavam para-brisas enquanto outros três faziam malabares.

Os vizinhos Lucas, 15 anos, e Carlos, 12, (ambos nomes fictícios) escolheram há um mês a pequena praça nas proximidades do encontro entre as avenidas Kennedy e Senador Vergueiro, no bairro Anchieta, em São Bernardo, para vender balas de goma e chicletes.

A dupla mora no bairro Tatetos, um dos extremos do município. A paisagem do local mais lembra um lugar distante do Interior do que o concreto e o asfalto da cidade que está entre os cinco maiores orçamentos do Estado.

Além da pobreza das famílias, a falta de infraestrutura do bairro também contribuiu para que os dois adolescentes desprezassem o período de férias e passassem a abordar motoristas oferecendo doces pelos semáforos.

"Moro com minha mãe, duas irmãs e meu padrasto, que é pedreiro, e é o único em casa que trabalha. Decidi vir para a rua para ajudar minha família e porque lá no Tatetos não tem nada para fazer, é só mato e lama, muita lama", afirmou Lucas.

Em média, os jovens passam entre cinco e sete horas vendendo seus doces nas ruas. A viagem do bairro onde moram até a região central de São Bernardo é longa e pode passar de uma hora de ônibus.

"É melhor chegar bem cedo para começar a vender. Quando conhecemos os motoristas dos ônibus, conseguimos entrar por trás. Outras vezes temos que pagar a passagem", contou Carlos. Ao contrário do que muitos podem pensar, segundo os jovens, os dias chuvosos são mais rentáveis. "Ficar embaixo da água incomoda, mas dá mais dinheiro. Acho que as pessoas ficam com dó", opinou.

No final do dia, os dois costumam retornar para suas casas com a contabilidade variando entre R$ 20 e R$ 30. "Se voltar com menos, penso que o dia não rendeu e que não valeu a pena", afirmou Lucas.

Com o olhar voltado para o chão, mas sem hesitar, o garoto mais velho afirmou que a situação de rua é degradante. "É muita humilhação. Tem gente que passa e xinga ou começa a fechar o vidro quando eu me aproximo", contou Lucas.

Apesar de toda a dificuldade, ambos afirmam que vão continuar na rua até que o ano letivo tenha início. Lucas está matriculado na 8ª série do Ensino Fundamental. E Carlos, que já repetiu um ano por falta, vai para a 5ª série.

Sem se esquecer do clima quase rural em que vive e foi criado desde pequeno, Lucas contou que sonha um dia em ser veterinário. "Quero estudar para cuidar dos animais. Na minha casa tem muitos cachorros e galinhas", contou.

Menos decidido, Carlos contou que também não pretende deixar a escola. "Vou estudar, mas ainda não sei exatamente o que vou fazer depois. Acho que quero mesmo ser só um trabalhador." AV e VF

 Prazer leva os adolescentes para fora de casa e não a necessidade

"Não falta nada para mim. Só venho para a rua quando dá vontade. Com o dinheiro, gosto de comprar roupa. Se tivesse algo melhor para fazer, não viria."

A afirmação de uma garota, 12 anos, que limpava para-brisas na Avenida Firestone, em Santo André, coincide com uma das explicações apontadas pelo Projeto Grande ABC Integrado sobre o que leva crianças e adolescentes às ruas. O estudo mostra que a rua representa uma escolha e não uma "situação inevitável."

Essa escolha, segundo o relatório, é reforçada e estruturada pela troca de experiências que o ambiente proporciona. Como há maior concentração de adolescentes nas ruas, uma das análises apresentadas pelo estudo é que "os programas de distribuição de renda estão agindo mais nas famílias com crianças e menos nas com adolescentes". Com isso, esses jovens "buscam outros atrativos nas ruas e fazem uso dos recursos oriundos do trabalho nas ruas para consumo próprio, em parte."

Para o coordenador do Projeto Meninos e Meninas de Rua, Marco Antonio da Silva, o Marquinhos, a rua sempre teve seu encantamento por si só, mas a questão financeira, tem sim, seu peso.

"Quem está nas ruas trabalhando são crianças pobres. Não há outra conclusão. Se fosse diferente, encontraríamos meninos que falam inglês, tocam piano e viajaram para Disney nas últimas férias vendendo balas nos faróis", afirma.

Levantamento feito pelo Inpes (Instituto de Pesquisa) da USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul) mostrou que o Grande ABC possui 55.200 moradores vivendo sob condição de miséria (com menos de um quarto de salário mínimo per capita), e 241.826 pessoas na faixa da pobreza (menos de meio salário de mínimo per capita).

RISCOS
Especialistas apontam que a criança ou o adolescente que trabalha nas ruas está exposto a riscos que vão desde atropelamentos a diversos níveis de violência, incluindo a exploração sexual. Marquinhos, do Meninos e Meninas de Rua, lembra que o tempo de permanência vai fazendo com que o menino adquira uma "cultura de rua" que o afasta da comunidade, escola e família.

"Este é o verdadeiro perigo. A cultura de rua detona todas as outras situações. E a maioria das crianças ainda não está nesta cultura, até porque todos os anos chegam crianças novas nas ruas", afirmou.

Garotos vêm da Capital para as ruas da região

Eles não nasceram no Grande ABC, mas escolheram as ruas da região para fazer qualquer coisa em troca de um pouco de dinheiro para satisfazer desejos pessoais e acrescentar alguns trocados no minguado orçamento familiar.

Quase todo dia, Fábio, 12 anos, Mateus, 11, e Igor, 14, (nomes fictícios) deixam o bairro do Pantanal, Zona Sul da Capital, para se exibir com malabares ou limpar para-brisas. Pela proximidade, Diadema é o destino mais frequente dos jovens, que também andam por São Bernardo, Santo André e, raramente, São Paulo.

Fábio está na 5°série do Ensino Fundamental e repetiu dois anos na escola. Para ele, ir para a rua não é só uma chance de estar com amigos e ganhar trocados, mas também de deixar os problemas de casa.

"Não dá para ficar lá o tempo todo. Minha irmã e meu cunhado só brigam. Esses dias discutiram por causa da televisão e minha mãe precisou separar. Um vive dizendo que vai matar o outro."

Mateus também vai para a 5° série e também perdeu dois anos de estudos. "Fiquei um ano quase inteirinho sem ir para a escola e, quando ia, não fazia nada", afirmou.

Para os dois garotos mais novos, a maior dificuldade de passar os dias na rua é a violência, não das autoridades - embora admitiam fugir da GCM (Guarda Civil Municipal) e do Conselho Tutelar -, mas dos outros garotos de rua.

"Uma vez, outros meninos correram atrás de nós. O Mateus conseguiu fugir, mas eu estava de chinelos e não deu para correr. Me pegaram, me bateram e levaram todo meu dinheiro", lembrou Fábio.

SEXUALIDADE
Igor pediu ao Diário que fosse chamado desta maneira. Apesar de escolher um nome masculino, a criança que a reportagem encontrou em um cruzamento de Diadema não é um menino, mas uma garota. Seu nome de batismo até lembra o codinome que escolheu.

Com boné escondendo o corte de cabelo curto, camiseta longa, bermuda e chinelo, Igor consegue mesmo se fazer passar por menino. "Só quem me conhece antes da rua é que sabe que sou menina", disse.

Igor, que já perdeu as contas de quantas vezes fugiu de abrigos, contou que há dois anos descobriu que prefere se relacionar com mulheres e que gosta do estilo mais masculino de andar, falar e se vestir.

Para ganhar dinheiro na rua, Igor contou que já fez de tudo. Há cerca de dois meses, um homem dizendo ser um oficial da Aeronáutica se aproximou e a convidou para ‘entrar no carro e sair para brincar'.

"Fomos no Parque dos Jesuítas (Centro de Diadema) e ele pediu para eu fazer fotos sem roupa. Fiz. Depois, ele voltou e eu acabei fazendo outras vezes. Ele me dava R$ 30, R$ 40 por dia", recordou.

Crianças usam dinheiro para ir ao shopping

"Gosto da rua para brincar. Com o dinheiro que ganho jogo fliperama e vou para a lan house." A frase de um garoto de 11 anos, morador de Mauá, tem a anuência do irmão de 12. Eles foram encontrados na quinta-feira, no calçadão que fica na esquina das ruas Barão de Mauá e Rio Branco, no Centro da cidade. Estavam acompanhados pelos vizinhos, uma menina de 13, e um menino de 10, que também são irmãos.

As crianças contaram que moram no Centro de Mauá, frequentam a escola regularmente, mas no bairro não há qualquer opção de lazer. Por isso, vão para a rua. Nem sempre pedem dinheiro, só quando querem "brincar no shopping." Conseguem até R$ 30 por dia entregando pequenos papéis aos motoristas, nos quais há escrito um pedido de R$ 0,50 "para comprar comida".

"Uma parte a gente entrega para nossa mãe quando ela precisa. Mas não é sempre", confessa, Henrique (nome fictício), 11. Os pais são faxineiros. Ele reclama que já foi xingado por motoristas. "Tem gente que chama a gente de mendigo. Uma vez um riquinho me mandou dormir debaixo da ponte", conta ele, que sonha em ser dono de um supermercado.

SANTO ANDRÉ
Patrícia, 13, e Carolina, 12, (ambos nomes fictícios) são amigas e moram na Zona Leste da Capital. Elas costumam ir para as ruas de Santo André para lavar para-brisas dos carros. O dinheiro que ganham é usado para ajudar em casa e para comprar doces e roupas.

"Minha mãe não gosta que eu venha, mas quero ajudar a pagar as contas lá em casa. É bom ajudar, né?", afirma Carolina. Para ela, ganhar dinheiro nas ruas é algo comum: a mãe e padrasto vendem doces caseiros nas vias.

Para Patrícia, a rua faz parte de seu cotidiano há pelo menos quatro anos. "Tenho amigas que dormem na rua. Mas eu não, volto para casa. Tenho medo do Conselho Tutelar levar minha mãe presa", diz. O pai de Patrícia é pedreiro, a mãe fica em casa para cuidar do caçula de 10 anos. Sua irmã mais velha, de 15, também trabalha nas ruas. VF


Poder público alega que possui trabalhos na área da Infância


Questionadas sobre os resultados do estudo e quais políticas desenvolvem para crianças e adolescentes no trabalho infantil ou em situação de rua, as prefeituras de Diadema e de São Bernardo informaram que já possuem trabalhos consolidados na área.

A Prefeitura de Diadema informou que elaborou o Plano Municipal de Erradicação de Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador, para ser implementado nos próximos três anos. O projeto, segundo a administração, é composto por seis eixos estratégicos com mais de 50 propostas que envolvem as diversas secretarias municipais. O município também citou o convênio com o Projeto Meninos e Meninas de Rua de Diadema, que realiza abordagem de rua.

Em São Bernardo, a Fundação Criança desenvolve programas de abordagem, educação social e acolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua. O Programa Andança mantém uma Casa de Acolhimento Inicial com educadores sociais que fazem abordagem de crianças e adolescentes em situação de rua. No ano passado, foram 180 atendimentos.

São Caetano informou que a cidade é um local de comercialização de produtos para crianças de outras cidades e que visa, a partir do diagnóstico, trabalhar formas conjuntas de solução. "O estudo será de grande aproveitamento para que os sete municípios possam se articular para reverter esta situação", diz a nota de resposta.

O secretário de Inclusão Social de Santo André, Ademar Oliveira, informou, em nota, que a Prefeitura não se manifestará sobre o estudo, "uma vez que o mesmo se encontra em processo de análise pelos municípios."

Ribeirão Pires respondeu que não possui crianças e adolescentes em situação de rua. Mauá e Rio Grande da Serra não retornaram ao pedido de informações do Diário.

 

Para professora, realidade pode ser extinta em cinco anos


Se o Grande ABC avançar nas políticas públicas direcionadas aos adolescentes, a realidade apontada pelo estudo pode ser extinta nos próximos cinco anos. A previsão é da professora de sociologia da PUC (Pontifícia Universidade Católica) e integrante do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), Maria Stela Santos Graciani.

Stela avaliou o relatório a pedido do Diário e considera que o número de crianças encontradas nas ruas e de pontos em que elas se localizam é irrisório perante a população da região (estimada em 2,5 milhões de moradores).

Para a pesquisadora, o relatório reflete que os programas de transferência de renda e as demais políticas da região têm efeito positivo. No mês de dezembro, 66,7 mil moradores do Grande ABC foram beneficiados pelo Bolsa Família. Além disso, 1.014 crianças estão cadastradas no PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e seus pais recebem benefício em dinheiro para mantê-los na escola.

Mas, conforme apontou a análise e reforçou a especialista, é preciso haver mais foco na adolescência. Para Stela, é necessário investir na criação de centros de entretenimento que mesclem arte, esporte, recreação e inclusão digital, principalmente nas periferias. "São equipamentos onde eles podem criar vínculos afetivos e sociabilidade. Desejos, hoje, procurados nas ruas."

 

‘Políticas devem abranger mais que trabalho e comida'

Para a professora e consultora de políticas públicas Marlene Bueno Zola, se as ações direcionadas à Infância e Juventude tiverem visão assistencialista, estarão com viés equivocado. "Não dá para trabalhar apenas o enfrentamento da fome, o ser humano tem várias necessidades, sociais e psicológicas inclusive. É preciso investir em escolas de qualidade, com atrativos, e trabalhar o pertencimento."

Marlene reforça que não se pode ter o olhar da "classe média protetora". "Não é só dar trabalho e comida. É claro, atender às necessidades básicas, sim, mas o ser humano precisa ser potencializado." Ela cita, como exemplo, a importância do jovem ter acesso à informática não só para procurar emprego, e sim para se comunicar com os grupos dele e estar "inserido" entre os iguais. 




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