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180 anos sem Beethoven
João Marcos Coelho
Especial para o Diário
26/03/2007 | 07:00
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Nesta segunda-feira completam-se 180 anos da morte de Ludwig van Beethoven. Ele é mais do que um grande compositor, um genial criador musical responsável pela maior revolução artística no mundo musical que até hoje influencia de modo decisivo os compositores contemporâneos. Beethoven (Bonn 1770 - Viena 1827) personifica o ideal do criador de música. Todas as listas, rankings e pesquisas feitas no mundo indicam, sempre, Beethoven em primeiro lugar quando se fala de música clássica. Qual seria a razão de tamanho poder?

Claro, não há uma única, mas várias. A primeira talvez seja que, contra todas as possibilidades biográficas, ele se impôs, e a sua genialidade, numa Viena em princípio hostil a qualquer músico que não se conformasse em ser equiparado aos criados em geral. Edmund Morris, autor de uma biografia lançada mês passado no Brasil (veja indicações de livros e CDs), abre seu trabalho contando uma piada que mostra bem estas dificuldades iniciais: perguntaram a uma feminista se ela aconselharia uma mulher de 23 anos, que perdeu quatro filhos, a abortar a quinta gravidez de um marido alcoólatra e violento? A resposta natural foi positiva. Pois bem: nossa consciente feminista teria abortado Beethoven.

A segunda foi a maneira inteligente e inédita como conseguiu compor seus ganhos. Em vez de ser empregado de um nobre – como Haydn foi durante mais de 30 anos –, ele fez com que um bando de nobres vienenses se juntasse para lhe dar uma mesada por tempo indeterminado. Na verdade, seu jeito arrogante coincidiu com um momento econômico em que os nobres não tinham mais como manter suas próprias orquestras e empregados. Um modo inteligente, para eles, de manter a pose foi financiar Beethoven. Outra boa idéia: não havia direitos autorais, e Beethoven vendeu os direitos de publicação da mesma obra para editores diferentes na França, Inglaterra, Alemanha e Áustria. Para se ter uma idéia, há um episódio célebre que revela muito de sua personalidade que gostava de demarcar território e independência: ele passeava ao lado de Goethe num parque em Viena quando, do lado contrário, aprovimava-se um grupo de nobres. Goethe, mais do que depressa, afastou-se para o lado, a fim de dar caminho aos aristocratas, e fez uma mesura. Beethoven nem quis saber. Continuou seu passo firme, sem desviar-se um milímetro, para espanto de todo mundo.

A terceira foi uma genialidade absoluta (é pena que a palavra gênio esteja tão gasta que a gente seja obrigado a colocar um adjetivo depois dela). Pois sua genialidade foi levar até o limite e fazer explodir todos os gêneros clássicos iniciados por Haydn e genialmente (eis a palavra de novo) polidos por Mozart. Nas sonatas para piano, por exemplo, pegou o bastão de Mozart e em 32 obras não só anunciou o romantismo, mas a estética modernista do século XX nas últimas três grandes sonatas (opus 109, 110 e 111). Nos quartetos de cordas, a mesma coisa. O grupo dos 17 quartetos começa haydniano, ultrapassa Mozart e instaura simplesmente a modernidade a partir do opus 130, com destaque para a Grande Fuga, opus 135.

Nas nove sinfonias o itinerário é o mesmo. Se as duas primeiras ainda relembram Haydn e Mozart, a terceira traz o jogo político para a música, com a homenagem depois retirada a Napoleão Bonaparte na Sinfonia Heróica, a terceira. As batidas do destino na Quinta Sinfonia, tão célebres, dão espaço para um tributo à natureza na Sexta, a Pastoral. E o formidável allegretto da Sétima, que foi bisado na estréia? (sim, naquela época o público aplaudia entre os movimentos e, quando gostava de um, o regente era obrigado a repeti-lo: uma espontaneidade que perdemos irremediavelmente no ritual hoje petrificado do concerto). E a Nona Sinfonia, a primeira a introduzir a voz na música instrumental por excelência? Foi usada e abusada por políticos de todos os matizes, de Bismarck a Hitler, da derrubada do Muro de Berlim em 1989 à adoção da Ode à Alegria, do último movimento, como hino da União Européia.

Faltou falar da única ópera escrita por Beethoven, Fidelio, da incrível Missa Solemnis, das dez sonatas para violino e piano (incluindo a célebre nº 9, a Kreutzer) e as cinco para violoncelo e piano.

Sempre que escrevo sobre Beethoven fico com a sensação de ter esquecido de dizer alguma coisa sobre ele. E, de fato, é praticamente impossível dar uma idéia completa de sua genialidade. Pelo menos mil livros foram escritos sobre ele nestes últimos 180 anos – pouco mais de cinco por ano. A quinta e a nona sinfonias estão entre as músicas que possuem maior número de gravações da música ocidental – medem-se às centenas.

Tudo isso significa que, quase 200 anos depois de sua morte, Beethoven, que também enfrentou a surdez a partir de 1802, está mais vivo do que nunca. Nas salas de concerto, no toque de Für Elise do caminhão de gás, na ousadia dos compositores contemporâneos. Beethoven, no mínimo, nos ensinou a não ter medo do novo.

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As sinfonias
Há duas versões interessantes em edição nacional. A primeira é uma integral em curso da Osesp. São leituras respeitáveis, sobretudo a Nona Sinfonia regida por Roberto Mincuzk, hoje titular da Orquestra Sinfônica Brasileira. Mas o maestro John Neschling, responsável por ótimas interpretações das sinfonias 2, 5, 7 e 8, acopladas com a abertura Egmont (dois CDs separados da Biscoito Fino), pretende regravar a Nona. A EMI Classics colocou recentemente no mercado outra integral em seis CDs a preço razoável, com a Orquestra da Filadélfia e o regente italiano Riccardo Muti. É perfeita para conhecer melhor o universo sinfônico de Beethoven, pois traz, além das nove sinfonias, as aberturas Leonora nº 3, da ópera Fidelio e A Consagração da Casa. As gravações, de excelente qualidade, são dos anos 1980, quando Muti era o maestro titular em Filadélfia. Há ainda um CD recente com a quinta e sétima sinfonias, da Universal, com Karl Böhm regendo a Filarmônica de Viena.

Piano e música de câmara
Poucas, mas boas as opções. Pode-se encontrar em sebos uma excelente gravação do Trio Arquiduque, para violino, piano e violoncelo, com o Trio Brasileiro de Gilberto Tinetti, Erich Lehninger e Watson Clis. O registro original já tem mais de 20 anos. É pena que a representante brasileira da Naxos, a Movieplay, lance tão poucos títulos (de um catálogo extenso). As boas exceções, no caso de Beethoven, são as sonatas opus 102, nºs 1 e 2 e a sonata opus 69, para violoncelo e piano, por Csaba Onczay (cello) e Jeno Jandó (piano). São leituras convincentes. Jandó também acompanha a violinista Takako Nishizaki nas três sonatas para violino opus 30. E o próprio Jandó possui uma boa integral das 32 sonatas para piano. Estão disponíveis, em gravações nacionais, o volume 1, com as sonatas Patética, Ao Luar e Appassionata; e volume 2, com a Waldstein, Tempestade e O Adeus. Uma bela amostragem do piano beethoveniano.

Outras obras
Há pouca coisa. Uma sensacional gravação do Concerto para piano e orquestra nº 5, O Imperador, numa leitura fantástica do pianista chileno Cláudio Arrau, acompanhado pela Staatskapelle de Dresden regida por Colin Davis. O CD foi lançado no Brasil pela Philips, hoje Universal. Procure em sebos.

O que ler
Existem três bons livros em português sobre Beethoven. 1) o recém-lançado Beethoven, de Edmund Morris (Objetiva, R$ 39,90) é uma introdução adequada à sua vida e obra. 2) uma seleta dos 1,5 mil documentos – entre cartas, diários e anotações do caderno de conversações – em tradução mediana de Wanderley Rodrigues da Silva, Vera Maria de Carvalho e Gabor Aranyi. A edição, sóbria, da Veredas (11-4485-1764), tem 234 páginas e custa R$ 55. 3) Beethoven: A Música e a Vida, de Lewis Lockwood (Códex, 2004, 682 págs, R$ 93). É caro, mas é uma formidável porta de entrada para Beethoven, o homem, e Beethoven, o compositor. Sessentão, Lockwood é um dos mais brilhantes especialistas em Beethoven da atualidade.



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