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'A Criança', novo filme dos irmãos Dardenne, merece ser visto
Por Cássio Gomes Neves
Do Diário do Grande ABC
26/05/2006 | 07:56
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Palma de Ouro. Irmãos Dardenne. Filme extra-Hollywood. Tantos rótulos, tantas credenciais envolvem o novo A Criança. Mas não é exatamente por isso que o drama dos irmãos/sócios belgas deve ser visto. O prêmio máximo de Cannes, concedido ao filme no ano passado, e o privilégio de trabalhar do lado de fora de uma máquina hegemônica não enchem barriga de filme nenhum. E ser pertencente aos Dardenne não justifica uma entrega cega, imediata – embora o novo longa-metragem demonstre de cara ser obra dos ditos-cujos. Trata-se, contudo, de novo filme, de produto independente, desatado da reputação de seus criadores para existir. Filme irrotulável, como pouquíssimos.

A Criança granjeou a segunda Palma de Ouro para os irmãos (Rosetta conquistou a primeira, em 1999). A dupla premiação, coisa rara em Cannes, não prova que os Dardenne sejam queridinhos de ninguém. E, sim, que são capazes de filmes distintos, de novas formas de expressão dentro de uma mesma constituinte artística – o que, no caso deles, inclui o registro da pobreza européia e a câmera posicionada como se fosse o terceiro olho de seus personagens, inconsciente mas presente.

A constatação imediata, uma vez terminado o filme, é sua perspectiva oscilante e que faz questionar quem é a verdadeira criança enunciada pelo título. Sonia (Déborah François) e Bruno (Jéréme Renier) são adolescentes, namorados e pais de um recém-nascido. Miseráveis, vivem entre albergues e um esconderijo situado às margens de um rio. Bruno esmola nos semáforos e aplica pequenos golpes e roubos, assessorado por dois moleques que não aparentam mais do que 10 anos.

Uma sutil montagem providencia uma alteração chocante (pelo menos dentro do manual de instruções do cinema narrativo). A criança, que a princípio parecia ser o bebê de colo torna-se a mãe, aparentemente irresponsável e demasiado dependente do namorado, o provedor da família. Em um lance, no qual Bruno vende o filho para adoção, troca-se não só o protagonista, mas o juízo. O pai veste a carapuça da infância, da irresponsabilidade. Lá pelo fim do filme, durante sua única ação adulta em todo o recorte narrativo, voltam todos a ser crianças, num choro coletivo, mais iniciático do que catártico, mais renascimento do que arrependimento.

Os Dardenne tratam com abordagem sutil a temática chocante. Conseguem, a partir da pureza formal, sem estouros de boiada estéticos ou maneirismos, sensibilizar os retratos dos enjeitados sociais a que se propõem. Não escandalizam; de escandaloso já basta a draga social que evocam na tela.

A câmera não atua como jurado ou como scanner social, com distância e indiferença disfarçadas de imparcialidade – estratégia bem comum de filmes que se esgoelam para legitimar-se como denúncia social. Comumente posicionada como se fosse corcova dos protagonistas, procura ela mesma ser encarnação do drama, cúmplice que cicatriza junto com os personagens, olho que tudo vê e nada julga.

A Criança, talvez mais do que Rosetta e O Filho (filmes anteriores dos irmãos), seja o melhor exemplo de musculatura torneada a partir da natação contra a maré a que os Dardenne se dedicam. Trabalham com uma arte de anti-identidade (no sentido de tornar idêntico), que rejeita formulações típicas do cinema, seja ao negar o protagonismo solitário, seja ao embalar circunstâncias chocantes com sensibilidade improvável, seja ao recusar que a Europa represente o pote de ouro no fim do arco-íris socioeconômico. Medalha de ouro.

A CRIANÇA (L’Enfant, Bélgica/ França, 2005. Dir.: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com Jérémie Renier, Déborah François. Estréia nesta sexta-feira no Espaço Unibanco 2, HSBC Belas Artes 4, Reserva Cultural 2, Unibanco Arteplex 6 e circuito. Duração: 94 minutos. Censura: 14 anos.




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