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Os herdeiros do coquetel
Por Illenia Negrin
Do Diário do Grande ABC
11/11/2006 | 18:59
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Quando começou a tomar o coquetel anti-retroviral, em 1996, Alzira (nome fictício) só pensava no marido, vítima fatal de Aids: totalmente debilitado, ossos evidentes, pele amarelada, fraldas geriátricas. Ele havia passado meses grudado à cama do hospital e consumido pela culpa de ter contaminado a esposa com o vírus HIV.

Hoje, a imagem do marido agonizante é lembrança triste para Alzira, 64 anos, duas filhas e três netos. Nunca mais viu alguém sofrer de Aids. Ela mesma não sofre. Os colegas que retiram a medicação gratuita no mesmo posto que a dona-de-casa, em Santo André, também não.

Segunda-feira é dia importante para Alzira. Faz 10 anos que a lei 93/13 foi aprovada pelo Congresso, garantindo medicação gratuita a todos os pacientes com Aids do país.

A universalização do tratamento diminuiu a mortalidade e deu vida longa aos soropositivos. A Aids passou a ser tratada como doença crônica, e hoje os coquetéis são distribuídos a 175 mil pessoas em todo o Brasil. Não mata aos rodos, como antes, e possibilita rotina quase normal aos portadores. Quase. Pacientes como Alzira, em tratamento há uma década, já não temem o HIV, mantido sob controle graças ao coquetel. Os problemas agora são outros.

A grande maioria, após anos de terapia anti-retroviral, se tornou diabética, hipertensa, e sofre de lipodistrofia – perda de gordura no rosto, nádegas e pernas, e acúmulo na região abdominal e costas, deixando o corpo com aparência disforme.

“Nunca tive problema de saúde. Sempre fiz caminhadas, me alimentei bem. Continuei fazendo tudo isso. Mas sofro de colesterol alto, pedra na visícula e diabetes”, conta Alzira.

A presença de dois ou mais tipos de doenças crônicas num só paciente mostra a necessidade de ações de distribuição de coquetéis.

“A complexidade do tratamento contra a Aids aumenta rapidamente. Houve uma mudança radical no perfil dos pacientes. Se por um lado o sistema público de saúde garante o tratamento, por outro não tem pernas para arcar com as seqüelas dos anti-retrovirais. Dez anos depois, elas começam a aparecer”, avalia o pneumologista Carlos Alberto de Oliveira, coordenador do programa DST/Aids de São Bernardo.

O especialista afirma que pacientes com Aids já sentem as deficiências do SUS (Sistema Único de Saúde). Acostumados ao bom atendimento dos hospitais e centros de referência, eles não encontram na rede básica a assistência especializada para as doenças adquiridas depois do HIV.

“A Aids aposentou a dupla médico-enfermeira. É preciso uma equipe maior. Além de assistentes sociais, psicólogos. Os recursos não são suficientes para isso”, sustenta o pneumologista.

Clarice (nome fictício), professora de São Bernardo, é outra veterana no tratamento anti-Aids. Tem 50 anos, e toma o coquetel há nove. Desenvolveu diabetes e tem dificuldade para conseguir medicação. Pior mesmo, ela conta, é a lipodistrofia. “Não tenho plano de saúde para fazer cirurgia plástica. Meu rosto afundou e estou esperando a aplicação de metacrilato (substância que funciona como uma espécie de cimento facial). Estou com aparência de doente”, relata.

Quando os colegas perguntam, ela disfarça. Pensou em dizer que tem lipodistrofia. Achou melhor não contar “meia verdade”. “Tenho Aids. Convivo com a doença. Mas sou soropositiva”, fala, num tom de ensaio.

Melhoras – Os progressos com o uso dos anti-retrovirais animou os pacientes e a classe médica. Tanto que alguns portadores tiveram melhoras consideráveis e abandonaram o tratamento. Outros, escorados na existência e distribuição dos remédios, negligenciam a prevenção. E a Aids, de doença maldita e perversa, se transformou em silenciosa.

“O tratamento exige uma disciplina espartana. A alimentação muda. Os hábitos têm de ser readequados. A rotina de exames tem de ser seguida à risca. Salvamos muitas vidas. Mas infelizmente não se sabe até quando essas pessoas viverão. Com o tempo, até o paciente ideal vai apresentar resistência a uma determinada combinação de medicamentos”, pondera o professor de Infectologia da Faculdade de Medicina do ABC, Munir Akar Ayub.

Quando soube que era portadora de HIV, Alzira não sabia nada sobre Aids. Clarice, muito menos, apesar de ser professora. Em pouco tempo, viraram uma máquina de decorar nomes de remédios e sabem decor o resultado de seus últimos exames. Andavam felizes com os avanços da farmacologia. Se antes tomavam 40 comprimidos por dia, recentemente chegaram a ingerir apenas seis. Não durou muito.

“Os potinhos de anti-retrovirais, posso hoje segurar nas mãos. Antes, iam na sacolinha. Agora apareceu a diabetes, os inchaços. A bolsa ficou pequena de novo”, relata Clarice.




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