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Ele, JT LeRoy, 13 anos, drogado e prostituído
Danilo Angrimani
Do Diário do Grande ABC
04/07/2005 | 08:30
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O escritor norte-americano JT LeRoy participa nesta segunda, às 20h, em São Paulo, de debate no Espaço Unibanco de Cinema (r. Augusta, 1.475. Tel.: 3288-6780). Terça à noite, ele autografa seu livro Sarah (Geração Editorial, 160 págs., R$ 32) na Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, Vila Madalena, São Paulo). Na quarta-feira, participa da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).

A agenda cheia, repleta de debates e contatos com o público, é uma contradição para a fama de LeRoy. Ele é apresentado em reportagens como um sujeito esquivo, recluso, que vive em prédios invadidos, e detesta ser fotografado, dar entrevistas e participar de leituras. As fotos de divulgação revelam um rapaz de cerca de 28 anos, de peruca feminina e um chapéu à Truman Capote. A imagem parece desfocada, lateral, escondendo muito mais do que exibe.

LeRoy é autor de três livros: The Heart is Deceitful Above All Things, Harold’s End e Sarah, este lançado agora no Brasil. O primeiro, The Heart is..., virou filme, dirigido por Asia Argento, que será exibido nesta segunda no Espaço Unibanco. Outro cineasta, Gus van Sant, vai filmar Sarah.

Blasfêmias – Apesar do pouco tempo de carreira, LeRoy já congrega um número saudável de inimigos. Em um blog, um crítico mais severo qualifica o autor como “uma bichinha sem talento, usando de táticas bastante óbvias para se tornar um hit no circuito cool”. Há até uma página na internet do gênero “I hate JT LeRoy” (Eu odeio JT LeRoy).

O Village Voice apresenta LeRoy como um autodidata bem-sucedido, que se autopromove compulsivamente e realiza um striptease literário, recheado de “abuso, confusão de gênero, abandono, prostituição, drogas – todas as sensacionalistas obsessões de nossa era”.

A lenda diz que LeRoy começou a escrever aos 16 anos, por recomendação médica. Um psiquiatra do serviço social sugeriu que ele escrevesse, para parar de ouvir as vozes que falavam dentro de sua cabeça.

LeRoy estaria sob a guarda de um asilo público, por se prostituir e usar drogas. Ele seria filho de uma prostituta, que engravidou aos 14 anos e supostamente se chamaria Sarah. O tema de seus livros seria a sua própria vida marginalizada, de prostituto mirim, usuário de drogas e sem perspectiva.

LeRoy deu detalhes sobre essa fase de sua vida em uma entrevista: “Eu vivi com uma família maravilhosa até os quatro anos de idade. Era um ambiente familiar estável, e eles tentaram me adotar. Mas minha mãe pediu minha guarda na Justiça quando completou 18 anos e ganhou, por ser mãe biológica. Ela era jovem, e aquilo era demais para ela. (...) Nós vivíamos na estrada, em carros, caminhões, em quartos de hotel”.

Banal – O enredo de Sarah é ao mesmo tempo original e retilíneo: um prostituto mirim, que se parece com uma garotinha, vive sob a guarda de um cafetão. O menino quer conhecer outras paisagens e foge. Acaba preso em outro antro, por outro cafetão. Será ou não resgatado pelo primeiro cafetão?

Ainda que a história seja resumida em um único parágrafo, o livro oferece entretenimento. A prosa distrai. Leva o leitor pela mão, como se fosse um guia turístico pelo submundo da prostituição do Meio Oeste americano: “À direita, ao lado do posto de gasolina, há uma longa fila de carretas ocupadas por caminhoneiros gays; à frente, o trailer onde nosso herói vive entre lençóis fedorentos; aquele sujeito de mau hálito, sujo e decadente, sentado em uma cadeira quebrada e espingarda nas mãos, é o guarda que impede os prostitutos de fugir”.

O garotinho travesti vive como escravo sexual entre pessoas que colecionam pênis de guaxinins, brincam com bonecas Barbie e assistem novelas brasileiras. As metáforas têm sempre tom caipira apropriado: um osso “amarelado como dente de mascador de tabaco”; “panquecas de caqui, grossas como uma bíblia”.

Quase como uma fábula surrealista, o prostituto mirim se torna uma santinha, capaz de adivinhar as fantasias sexuais mais ocultas. Paira sobre as águas. Prefere se vestir e agir como menina, mas é menino. É como se o autor desse um passeio, muito rápido e sem pretensões, pela maré do realismo mágico de Gabriel García Márquez.

Às vezes, o tom da narrativa, ao mesmo tempo violento e prisioneiro de um mundo muito particular, lembra William Faulkner, de Enquanto Agonizo. Às vezes, no entanto, parece alguém com dificuldade para contar uma história elementar, trabalhando elementos pouco convincentes. Felizmente, para o leitor, esta última impressão é a menos visível nas 160 páginas de Sarah.

trechos de Sarah

Tenho aulas diárias com vários garotos de Glad, que carinhosamente chamam uns aos outros de baculum, palavra que, Glad explica, quer dizer pequena vara em latim.

Aprendo a desenrolar uma camisinha com os dentes sem que o homem perceba. Aprendo a abarcar em minha boca cada milímetro de um homem. Essa eu já conhecia. Fazia campeonatos com Sarah. Numa cama de motel, deitávamos lado a lado, com a barriga par cima. As cabeças ficavam penduradas, encostadas na borda da cama, e nossos esôfagos e gargantas tinham de ficar alinhados. Então colocávamos uma cenoura na boca, levando-a o mais fundo possível sem engasgar. Aí marcávamos a cenoura com o dente de cima e depois víamos quem era melhor. Sarah sempre ganhava.

– Você ganha porque é mais velha e maior – eu disse uma vez e ela me bateu tão forte, que vi estrelas.

– Nunca mais me chame de velha – ela disse, e foi embora chorando.

Aprendo truques, como borrifar spray contra mau-hálito na mão direita, de modo que se um programa não for dos mais higiênicos, é só inspirar fundo o aroma de hortelã da mão e pensar nos Alpes nevados em vez de sentir aquele cheiro de amônia que às vezes os homens têm e que só faz lembrar um banheiro fétido.

Aprendo a satisfazer aqueles que gostam de se vestir de mulher.

– Esse é o tipo mais difícil de todos – Pie me diz. 

Trabalho atrás de galpões abandonados, escondidos por um emaranhado de loureiros e ladeados por uma estradinha empoeirada. Em trailers caindo aos pedaços, que não precisam de mais que uma boa chuva para serem destruídos de vez, moram outras seis pisteiras. Todas do sexo masculino. Stacey, um sujeito careca, obeso, de sobrancelhas exageradamente depiladas, e, segundo consta, ex-motorista de caminhão, é o papai do pessoal. Ele passa o dia inteiro sentado numa cadeira que tem a indefectível cor de sujeira de unha. Sem sair dali, ele marca encontros para seus garotos pelo rádio e gasta o resto do tempo assistindo a novelas do mundo inteiro. Mesmo que só fale inglês, ele já está condicionado e sabe quando tem de rir, chorar ou roer as unhas de preocupação. Não faz muito tempo ele caiu de amores pela vilã de uma novela portuguesa, então encomendou fitas e livros para aprender português em casa e assim conseguir expressar verbalmente toda a riqueza de sentimentos que ele via na expressão facial da atriz.

Todos os seus garotos dormem nos fundos em camas de acampamento. Eles são mais velhos do que eu, mas nenhum fica no meu pé ou tenta dar uma de protetor. Creio que me toleram com uma indiferença vaga e benigna.

Dois deles são bêbados inveterados, que só trabalham o suficiente para comprar o uísque de quinta categoria que Stacey vende a um preço bem salgado. Outros dois foram largados no Three Crutches pelos ex-amantes caminhoneiros. Para matar as saudades, vivem cheirando cola e solventes, também vendidos acima da tabela por Stacey. Os preços são tão altos que todos acabam pedindo empréstimos a ele, e, antes que percebam, estão endividados até o pescoço. Por isso, mesmo quando alguém quer ir embora, tem de desistir da idéia enquanto não quitar a dívida.




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