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Nós do Morro: teatro pela transformação
Mauro Fernando
Do Diário do Grande ABC
16/11/2003 | 19:13
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O teatro não apenas como arte, mas também como ação social. Fundado em 1986 por iniciativa do ator e diretor Guti Fraga, o grupo Nós do Morro – cuja sede fica no Vidigal, morro localizado entre Leblon e São Conrado, no Rio – é um exemplo das possibilidades que a arte oferece quanto à modificação da massacrante realidade. "Espírito crítico", "perspectiva de transformação" e "construção do futuro" são expressões correntes no Vidigal de hoje.

“Quis montar um grupo com uma filosofia de vida para revolucionar a comunidade. Quando tu não tens a auto-estima equilibrada, não descobres as próprias capacidades, não te sentes capaz de fazer as coisas. Essa história de que a arte é para quem tem dinheiro é uma bobagem, um bloqueio cultural que conseguimos quebrar”, afirmou Fraga em debate realizado na sexta-feira, durante o Seminário Teatro e Transformação Social, em Santo André.

Fraga trabalhou com Marília Pêra de 1981 a 1986, quando foi convidado a tocar um projeto que firmasse um movimento cultural no Vidigal por meio do teatro. Chamou o cenógrafo Fernando Mello da Costa, o iluminador e diretor Fred Pinheiro e o autor Luís Paulo Corrêa e Castro para ajudá-lo. Do Antiquarius, um dos restaurantes mais famosos do Rio, Fraga passou aos pratos feitos de botequins. E não se arrepende.

Disciplina, organização, responsabilidade e vontade são as premissas de trabalho, o qual Fraga sintetiza como “resgate social básico”. Os cerca de 300 adolescentes e crianças com que ele trabalha no Nós do Morro não se distraem quando é o caso, por exemplo, de ceder o lugar no ônibus para uma pessoa mais velha. Teatro e cidadania, pois, caminham juntos. “É preciso pensar coletivamente, o coletivo é transformador”, disse.

O estigma de grupo de favela, rico em intenções, mas pobre em realizações, caiu por terra em 1996, quando inaugurou o Teatro do Vidigal com o espetáculo 'Machadiando' e ganhou o Prêmio Shell de Teatro na categoria especial. Em 1998 o Nós do Morro realizou sua primeira temporada fora do Vidigal, estreou seu primeiro infantil ('É Proibido Brincar') e faturou o Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem na categoria especial. “Só se quebra o estereótipo com qualidade.”

Em 1996 seis atores da companhia entraram no elenco de 'O Campeão', novela da TV Bandeirantes. Três anos mais tarde, dois atores do grupo fizeram o longa-metragem 'Orfeu', de Cacá Diegues. Já se solidificara, então, o trabalho de revelação de talentos. Fraga trabalhou com Fernando Meirelles e Katia Lund, diretores de 'Cidade de Deus', nas oficinas de interpretação que definiram o elenco do filme.

Leandro Firmino da Hora e Jonathan Haagensen tornaram-se conhecidos do grande público por intermédio do longa, que atingiu a marca de milhões de espectadores. Roberta Rodrigues, Diego Ferreira, Samuel Melo e Mary Sheila começaram a freqüentar as salas de atores da TV Globo. Babu Santana filmou com Helvécio Ratton ('Uma Onda no Ar'), Leila Hipólito ('As Alegres Comadres') e Cláudio Torres ('O Redentor', ainda sem data de estréia prevista).

Isso não significa, porém, que Fraga não se preocupe com a “ilusão de um mercado de trabalho que se chama megasena”: “o Nós do Morro tem atores que fazem bastante teatro e estão na mídia. Mas é necessário aprender a ser ator, criar uma atitude por meio da simplicidade. Se hoje tu és protagonista, amanhã podes estar na bilheteria, pintando cenário ou levando água para o colega”.

Fraga reconhece que é “difícil administrar o sucesso”, e isso se dá “independentemente da classe social”, mas “o pobre cai num deslumbre maior”. “O assédio da mídia é um perigo, ela te esvazia, tira até o que não tens”, afirmou.

Quanto à questão da cidadania, Fraga cita o episódio em que uma atriz negra entrou numa loja de cosméticos e experimentou um batom. De imediato foi tratada como ladra. Consciente, ela acionou a Justiça. “Hoje há um esclarecimento maior. A transformação da pessoa por meio da arte é o que mais me emociona no trabalho do Nós do Morro.”




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