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Tráfico é Estado nas favelas do ABC
Por Gabriel Batista e Artur Rodrigues
Do Diário do Grande ABC
31/07/2005 | 07:43
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O traficante de drogas cria leis, as executa e fiscaliza quem não anda na linha nas favelas da região. Tanto poder não vem de graça. O silêncio que acoberta esses criminosos é comprado com cestas básicas, festas e outras gentilezas. Delatores pagam com a vida. Se tiverem sorte, são exilados da favela. Essa é Justiça do tráfico, a única presente na vida da maioria dos 476 mil moradores de favelas do Grande ABC.

A estrutura de crime organizado é comum no Rio de Janeiro. Nas favelas da região do Grande ABC, encontra-se em estágio avançado. "O tráfico do ABC está mais especializado nos moldes do crime do Rio de Janeiro do que no da capital", analisa a doutora em Serviço Social pela PUC-SP Luzia Lippi, que realizou pesquisa sobre o tema em Santo André.

São 588 favelas e núcleos na região, a maioria sob o regime do narcotráfico. "Tenho certeza de que há tráfico de drogas em todas as favelas da região. Em algumas mais, em outras menos", garante o chefe de investigação Otacílio Augusto, da Dise (Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes) de Santo André. O delegado titular da Dise de São Bernardo, Waldir Covino Júnior, é mais cauteloso. "Não posso afirmar que há tráfico em todas, não tenho como provar. Mas suspeitamos que sim", diz.

A favela da Tamarutaca, cravada entre áreas nobres de Santo André, é apontada pela polícia como principal foco de drogas na região. O morador Adamastor* revela que os limites das benfeitorias dos traficantes vão além da assistência básica. Eles movimentam o calendário festivo da comunidade. "Quando chega perto do Natal, o pessoal (traficantes) faz concurso de dança para meninas. As primeiras colocadas recebem prêmio em dinheiro", diz. E as cestas básicas distribuídas mensalmente pelos traficantes na favela superam de longe as doadas pela igreja evangélica Avivamento Bíblico, que é capaz de beneficiar no máximo dez famílias.

O promotor de Justiça Amaro José Thomé Filho, do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado, afirma que recebe informações genéricas sobre as ajudas por parte dos traficantes, o que dificulta o serviço da polícia na procura de testemunhas. "É mais um mecanismo de autoproteção dos traficantes do que a substituição do Estado. Eles podem ajudar a comunidade de forma imediata, mas não a longo prazo", interpreta o promotor.

A ajuda do tráfico vem a curto prazo, as sentenças também. A dona-de-casa Marilene* teve o marido assassinado em um dos tribunais da favela do Condomínio Maracanã, onde eles moravam, em Santo André. O marido roubou cocaína dos traficantes para vender por conta própria. Foi morto com 12 tiros dentro de casa. Os mesmos criminosos que executaram o marido de Marilene distribuem cestas básicas, financiam a construção de casas, compram remédios para crianças, fazem festas grátis com muito forró e levam doentes ao hospital de madrugada.

As lembranças da infância de Carlos*, 20 anos, morador da favela do Jardim Oratório, em Mauá, revelam um pouco da relação de afeto e medo com o tráfico. "Quando eu tinha uns 10 anos, tinha uns traficantes que eram daqui, respeitavam todo mundo, davam brinquedo para as crianças. Aí, eles venderam a boca e começou a matança."

As regras são as mesmas para qualquer um que queira entrar e, principalmente, sair da favela. O taxista Aldo*, 50 anos, é de São Bernardo, mas já rodou boa parte das favelas da região. "Vou levar os moradores e eles já vão dizendo o que tenho de fazer", relata. Às vezes, basta uma piscadinha no farol. Em alguns lugares, basta entrar com a luz interna do veículo acesa. Em todas, nunca se deve entrar com farol alto ou apagado.

Para quem está de fora, a impressão mais marcante desse mundo onde poucos mandam e muitos obedecem são os tiros na calada da noite. Marcelo*, 30 anos, vizinho da favela da Vila São Pedro, em São Bernardo, quer comprar um binóculo para observar melhor. "Fico curioso para saber o que acontece ali dentro."

* Os nomes são fictícios

Regras e benfeitorias
As normas do tráfico de drogas em favelas do Grande ABC:
Distribuir cestas básicas para moradores.
Fazer festas para adolescentes, com bebida e comida grátis.
Comprar remédios para mães de família necessitadas.
Conseguir comida para as famílias mais pobres.
Punir maridos que agridem as mulheres.
Escolher quem entra na favela. Programas assistenciais muitas vezes têm de passar pelo crivo do tráfico.
Ajudar na construção de barracos.
Estabelecer horários limites para entrada e saída de moradores.
Proibir roubos dentro da favela.
Procurar ladrões que assaltaram bares dentro da favela e vingar o crime.
Julgar brigas graves dentro da comunidade e decidir qual parte deverá se mudar do bairro.
Estabelecer códigos de identificação de moradores. Carros que entram na favela, geralmente, entram com farol baixo e luz interna acesa.
Dependendo do caso, matar quem não cumpre com os códigos estabelecidos ou suspeitos de serem delatores.
Proteger comércio e escoltar mercadorias que entram na comunidade.

Pontos líderes de tráfico na região
Tamarutaca (Santo André)
Favela do Cata Preta (Santo André)
Favelas do Cruzado 1 e Cruzado 2, no Jardim Santo André (Santo André)
Morro do Samba (Diadema)
Favelas da Coca-Cola e Naval (Diadema)
Vila São Pedro (São Bernardo)
Carminha, no bairro dos Casa (São Bernardo).
Nova Divinéia, no bairro dos Casa (São Bernardo)
Jardim Kennedy, no Jardim Mauá (Mauá)
Itapark (Mauá)
Favela do Capuava (Santo André)
Zaíra (Mauá)
Morro do Kibon, no bairro Capuava (Santo André)
Ferrazópolis (São Bernardo)
Alvarenga (São Bernardo e Santo André)
Jardim Regina (São Bernardo)




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